quinta-feira, 31 de março de 2011

Constituição humana

Pele, 

ossos,

músculos,

carne.

Milhões de células.

Complexo sistema geneticamente codificado.

Órgãos que pulsam compassadamente.

Mas, o que ninguém nos explica, 

cientificamente, 

é que somos dotados de alma, 

espírito, 

um sopro divino,

 que nos diferencia, 

nos torna únicos. 

Somos seres de luz 

a iluminar nosso próprio caminho 

e o de nossos companheiros de jornada.

E é o meu espírito que me torna eu mesma,

 l  i  v  r  e

voltada para o bem, o bem querer e o celebrar da vida.

A vida é daqui pra frente

Às vezes a vida nos prega peças, nos faz solitários de nós mesmos. Nos prende em nossa imensa e cultuada liberdade: quando somos presos, nos queremos livres; quando somos livres, buscamos alguém que nos prenda.

Eu mesma. Tenho vontade de quebrar todas as bonecas de barro que tenho. (E olha que são 80 e tantos olhos que me fitam). Tenho vontade de me desfazer de todos os discos - inclusive o do Pixinguinha - tenho vontade de rasgar todos os livros - inclusive o Neruda - e me dá ganas de me desfazer das panelas e gamelas, juntamente com as colheres de pau (e nunca mais pensar naquele Vau). As fotos dos tios e tia, jogar na pia! As fotos do professor Vicente? Chamá-lo demente. Os restos e cacos? Vender barato.

Tenho vontade de voltar ao passado de mim mesma, quando era dona de mim, e buscar na memória a data em que o contrato foi assinado. Rasgá-lo, quebrar canetas, fugir e fazer o que me der na veneta...

Mas então, o peso da realidade me invade. O tempo não volta e sei que a nada fui forçada. Apenas errei. Ou as coisas mudaram. E o tempo evoluiu, juntamente com minhas responsabilidades e problemas.

Eu não posso voltar atrás e tenho muito o que fazer daqui pra frente. Então, por mais lindo que seja o dia, a cidade onde moro, a luz do fim da tarde ou meus sonhos mais antigos, a vida é daqui pra frente. 

sexta-feira, 25 de março de 2011

esperando

esperando. nada mais tenso que isto.

esperar. aguardar. impotentemente inerte.

dores musculares.

dores de cabeça.

dores físicas para aplacar o mínimo que seja uma lancinante angústia perante o nada.

o ser no nada.

o vazio.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Tal qual

Apesar de criança, conseguia saber que era estranho acharem que sua testa parecia com a da avó. Que comparação! As pessoas gostam de falar do olhar, do sorriso, do semblante, da índole e do caráter. Nunca antes ela ouvira alguém encontrar semelhanças na testa. Mas havia alguma razão naquilo. E ela gostava. A testa da avó, sua tez moura, havia ficado como herança. Lado a lado com um enorme conjunto de características genéticas e culturais que, de tempos em tempos, ela gostava de relembrar. A avó, o jeito sempre alegre, carinhoso, protetor. Aquela senhorinha pequena, de fartos abraços, coração aberto, paciência imensa, o clichê das avós do século passado, que já não existem  mais. 

A avó era a primeira a acordar e a última a dormir. A avó estava o tempo todo a trabalhar, sem se cansar. A avó que cozinhava, costurava, tricotava, escrevia cartas e versos, rezava seus terços e levava os netos à missa aos domingos. 

A avó estava sempre perfumada da sua realidade. Seus aromas passavam do café para o leite quente; para suas "fatias de ovo", que era como chamava as rabanadas diárias; para o feijão com toucinho; para as galinhas e sardinhas fritas; para as polentas, sopas e açordas.

A avó estava sempre imersa nos seus ruidosos afazeres, auxiliada por seus eletrodomésticos antigos ligados todos ao mesmo tempo: panela de pressão, máquina de lavar, aspirador de pó, enceradeira, radinho de pilha e máquina de costura. Tudo, é claro, com as novelas da Janete Clair ao fundo e os seus maravilhosos cantarolares de fado. A avó assistia TV até tarde morrendo de sono para o avô não dar bronca nos netos.

Parecer a testa da avó, ao mínimo que seja, é uma honra. Embora alguns vejam de forma diferente, sempre e tudo, embora ela mesma saiba que uma moeda tem suas duas faces, como desprezar lembranças tão vívidas? A neta sabia, sim, o quanto a avó era maior que aquilo tudo. A avó era muito maior que as suas tarefas domésticas, mas nem por isso estaria constantemente estafada, ou numa depressão profunda, como poderiam supor.  A avó do século vinte chorava e cantarolava fados enquanto fazia o almoço. Já a neta do século vinte e um chora e cantarola fados bebendo vinho tinto sozinha à noite.

A testa é a mesma. A tez moura também. Um coração apertado e o gosto pelo fado são atávicos. 


Oração

Obrigada, meu deus, por aqueles que ainda  me amam
Obrigada por eu ainda ter pra onde voltar
Obrigada por eu ter um objetivo de vida
Obrigada por eu ter desejos no olhar
Obrigada pela minha saúde
Obrigada pela minha inteligência
Obrigada pelo meu discernimento

Obrigada, meu deus, por ter guardado os meus amigos
Obrigada por estar viva
Obrigada pelos meus filhos e pelos meus pais

Obrigada por eu ser de uma época antiga
Obrigada por eu ter alguns valores
Obrigada por eu ainda poder chorar

Obrigada por eu ser forte
Obrigada por eu ter fé
Obrigada por eu insistir
Obrigada por eu continuar

obrigada obrigada obrigada obrigada obrigada........

terça-feira, 15 de março de 2011

LUÍSA

Luísa,
teu sorriso é uma divisa
entre um vento forte e uma brisa
que veio me carregar

Luísa,
teu olhar tem uma lua cheia
que por dentro me incendeia
e a cada dia eu posso mais te amar

Luísa,
teus olhos são lua cheia
teus dons, menina-sereia
encantam a alma e o coração vagueia


*****

O vidro da minha janela sem cortina
me reflete menina
Quanto mais eu olho para fora
mais ele me mostra por dentro
Mas quando o meu olhar força o vidro

(da janela do quarto onde velo o sono e os sonhos de minha filha)

e atravessa a imagem
O que eu vejo é uma alma nua e sem rugas
despojada

Por isso acho graça quando
minha filha de dois anos acorda e
me chama de madurinha

Desde sempre, ela já era minha primeira leitora!
Para sempre, ela é minha primeira mentora!

Para minha mui querida e amada filha Luísa, que sempre lê meus escritos e nunca se decepciona, mesmo quando as histórias não são para ela ou não são sobre ela. Luísa é uma alma extremamente feminina: sensível, sensitiva, delicada e forte, linda, sonhadora, moderna, inovadora, uma artista equilibrista das cordas bambas.  Luísa, pura emoção, puro coração. Querida, eu deveria ter desenhado um band aid ao lado do seu coração despedaçado... mas saiba que sempre estarei te amando, sempre estarei segurando sua mão, sempre estarei curando suas feridas. Sei, também, que essas dores irão diminuir com o tempo... é assim a vida, acredite, e você é muito forte.

FELIZ ANIVERSÁRIO !!!!!!!!!!!!!!!!!!

quinta-feira, 3 de março de 2011

Imagens do tempo

Dentre as vívidas e coloridas lembranças que trago, gosto, especialmente, das imagens em preto-e-branco de meu pai. Não sei ao certo se são lembranças ou resquícios visuais das velhas fotos, tantas vezes vistas nos álbuns. Álbuns que minha mãe confeccionava com tanto zelo, escrevendo abaixo a história de cada um daqueles momentos, como ninguém. Anos mais tarde, eu mesma quis reproduzir alguns desses álbuns. Confesso que não tive fôlego nem paciência.

Na minha infância, muitas vezes, em algumas tardes chuvosas - como a de hoje - , minha mãe preparava chá e ficávamos por horas vendo as fotos e ouvindo as histórias daquelas pessoas, personagens de nossa família.

Meu pai aparecia pouco, mas as fotos mais bonitas são aquelas capturadas do passado, da sua juventude, com o seu alinhado terno claro. Essas fotos estampam uma alegria e uma juventude que o tempo levou embora. É curioso ver o passado e constatar hábitos antigos, costumes de uma época, trejeitos que não se conhecem mais.

Os sonhos retratados daquelo moço, cheio de amigos, que saía em turma e registrava aqueles momentos para a posteridade, ainda estão intactos. Bem desgastados, é verdade, mas a emoção que as fotos guardam quase pode ser tocada. Os olhos são os mesmos, o semblante, o sorriso. Memória viva de uma época que passou.

Muito tempo se passou. Uma vida inteira se passou, mas aquele rapaz de terno e gravata, cabelos alinhados, estará pra sempre me sorrindo numa foto em preto-e-branco. E quando eu olhar fotografias antigas, em algumas tardes chuvosas - como a de hoje - , vou me imaginar viajando para o passado e para o futuro. Tudo fica um pouco misturado: o futuro daquele passado, que é o hoje; o passado daquele futuro, que também é hoje; e a mescla disso tudo.  E além de me distrair, passar o tempo, posso refletir sobre as lições de meu pai. Lições que, certamente, nem eu nem ele sabíamos existir. Lições de Caetano Veloso, lições do tempo, do tempo de todos nós. 

  
"És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo..."


quarta-feira, 2 de março de 2011

DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA

Nota de Esclarecimento:  A senhora Maria Amélia da Silva, residente e domiciliada nesta capital, Belo Horizonte, aos vinte e oito de fevereiro de 2011, nomeia e constitui como seu bastante procurador este relator, escrivão, residente e domiciliado na mesma capital, atuando nesta comarca, com a finalidade de redigir estes termos de Decretação de Falência da sociedade que ora se desfaz, da qual a supracitada fora sócia em partes iguais, outorgando-lhe amplos, gerais e ilimitados poderes para o relato dos fatos e, ainda, para o bom e fiel cumprimento da descrição dos mesmos, a seguir averbados, e, também, para que possam assim ser conhecidos na sua íntegra.

A requerente MARIA AMÉLIA afirma que hoje acordou disposta a decretar falência. Sua própria falência. Falência de sua vida pessoal, pública e privada. Afirma que não aguentava mais. Estava cansada de falar que está tudo bem (seja por qual motivo for).

A mesma declara que suas relações ruíram, sua sociedade conjugal acabara e apenas 50% dos filhos tinham com ela um bom relacionamento. Afirmara ainda que estava mais velha, acima do peso e abaixo da estatura que gostaria de ter. Não fizera pós-graduação. Não falava uma segunda, nem mesmo uma terceira língua. Não dominava a informática. Não dirigia. Não tinha cartão de crédito - o que a alijava das compras pela internet e do mundo dos mortais, e, o mais grave, gravíssimo, não trabalhava - portanto não declarava Imposto de Renda e muito menos podia sustentar-se sozinha.

Amélia relata que havia pensado em se mudar. Mas não tinha para onde. Não tinha dinheiro. Não tinha bens. Não tinha coragem. E, ainda  por cima, tinha medo. Medo e um ranço machista que crê que se a mulher sai de casa não tem direito aos filhos os aos bens. Bens? Que bens? O único imóvel que possuía é assinado igualmente por ela e pela parte contrária, que, apesar de não saber onde fica o açúcar, suas próprias cuecas e com quantos quadradinhos de vidro as janelas são feitas, ainda se presume senhorio e se nega a sair ou a lhe deixar ficar.

Maria Amélia, resignada, se sentia massa falida. Massa amorfamente falida. Contudo, pesquisando, deparou-se com a seguinte definição: abre falência aquele que não consegue arcar com o ônus de suas despesas, o inadimplente.

"Falência é uma situação jurídica em que uma empresa ou sociedade comercial fica impossibilitada de honrar as suas obrigações e realizar os pagamentos devidos aos seus credores, porque o valor das suas dívidas (passivo) é superior ao valor do seu patrimônio (ativo)."

Essa pessoa, definitivamente, não era ela. Maria Amélia conta que sempre honrou suas obrigações e, quanto ao seu patrimônio sentimental, seu ativo é infinitamente maior que o seu passivo.

Faço a seguir a defesa de Amélia: ela nunca deveu nada - a ninguém - nunca pediu, nunca mentiu, nunca traiu. Pelo contrário, ao longo desses anos todos - que não podia  precisar como gostaria - eram vinte, mas a parte contrária conta apenas como 15 - aliás, a parte contrária conta apenas do nascimento do filho mais velho pra cá, como se nada hovesse antes..., bem, ao longo desses 20 ou 15 anos, havia se dedicado ao trabalho árduo, ingrato e não reconhecido de dona de casa prestimosa e mãe zelosa, a tal verdadeira Amélia, a mulher de verdade.

Por sua própria conta e risco, verdade seja dita! Nunca, jamais, em tempo algum, foi pressionada a algo. Até dissuadida já fora, mas havia aguentado firme. Resistiu. Achou que valia a pena. Ela se afastou dos familiares, dos amigos, da profissão, da cidade, dos bens culturais. Abraçou, por vontade própria, outra causa, outra cidade, outra forma de vida. E caiu em sua própria armadilha. Incompreendida aqui, lá, acolá.

E ainda assim Amélia não estava devendo nada: fizera tudo o que deveria ter sido feito, sempre acompanhando de perto o andamento da casa, os filhos e o marido. Ficou sozinha com suas crianças pequenas todas as vezes em que se fizera necessário, em virtude da vida profissional atribulada da parte contrária; ficou sozinha com suas crianças pequenas todas as vezes em que não se fizera necesário, em virtude das festas, passeios ou viagens que ela, simplesmente, não poderia ir por não ter uma outra pessoa que cuidasse dos filhos.

E Amélia ainda passava as camisas, opinava sobre o perfume, fazia bolinhas nos pares de meia e guardava junto com as cuecas na gaveta. Com zelo e alegria. Relata, ainda, que no "retorno do guerreiro", o almoço e o tira-gosto estavam sempre prontos, assim como o copo preferido e as cervejas no freezer - após devidamente higienizadas, é claro. 

As pressões psicológicas, as opiniões divergentes, as atitudes discrepantes não vêm ao caso, já que a tudo Maria Amélia aguentou por acreditar que valia a pena. Com certeza, tinha também sua parcela de culpa (para dar no que deu, nesse descaso em que se transformou aquela sociedade?!). O que lhe doía, contudo, era saber que o público externo acreditava que ela não via a diferença entre eles, os amargores... enfim, nunca fora alienada. Sempre viu tudo, mas sempre acreditou que estaria tudo bem assim, que ainda valia a pena assim.

Mas tudo sempre acaba. Amélia descobriu, sabiamente, que quem muda somos nós - e não o outro. Então ela mudou. Pouco, é verdade. Mas mudou a direção. Na sua viagem de 360°, reencontrou o caminho de onde partiu. Reencontrou o seu eixo. E agora segue pelo outro lado da bifurcação.

Ela pode estar, inicialmente, se sentindo massa falida. Mas não é. Nunca teve medo dos seus investimentos: de chorar suas lágrimas, de tentar recomeçar, nunca teve medo de aguentar mais uma vez. E é exatamente por isso que agora não vai ter medo de escolher seu novo caminho.  O desapego é difícil. Podar hábitos arraigados é difícil. Beber uma cerveja sozinha num bar é difícil. Mas só que agora Maria Amélia sabe que é possível, pois é o seu mais puro desejo.

Enquanto narra esta história, Maria Amélia atravessa o seu olhar por um dos quadradinhos de vidro da janela da sala de visitas (a propósito, são quatro janelas com 40 quadradinhos de vidro cada) e, além das árvores e dos telhados das casas vizinhas, vê uma vida lá fora que também está pronta para ela.

Sendo assim, este não é um aviso de decretação de falência. Mas continua sendo apenas a quem interessar possa, visto que, conforme o estimado jornalista e filósofo Barão de Itararé, "a vida pública é uma continuação da privada..."

Dando tudo por bom e valioso, cessam os efeitos deste instumento a partir do seu desfecho. Por serem verdadeiros os fatos, atesto e dou fé pública.