quarta-feira, 2 de março de 2011

DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA

Nota de Esclarecimento:  A senhora Maria Amélia da Silva, residente e domiciliada nesta capital, Belo Horizonte, aos vinte e oito de fevereiro de 2011, nomeia e constitui como seu bastante procurador este relator, escrivão, residente e domiciliado na mesma capital, atuando nesta comarca, com a finalidade de redigir estes termos de Decretação de Falência da sociedade que ora se desfaz, da qual a supracitada fora sócia em partes iguais, outorgando-lhe amplos, gerais e ilimitados poderes para o relato dos fatos e, ainda, para o bom e fiel cumprimento da descrição dos mesmos, a seguir averbados, e, também, para que possam assim ser conhecidos na sua íntegra.

A requerente MARIA AMÉLIA afirma que hoje acordou disposta a decretar falência. Sua própria falência. Falência de sua vida pessoal, pública e privada. Afirma que não aguentava mais. Estava cansada de falar que está tudo bem (seja por qual motivo for).

A mesma declara que suas relações ruíram, sua sociedade conjugal acabara e apenas 50% dos filhos tinham com ela um bom relacionamento. Afirmara ainda que estava mais velha, acima do peso e abaixo da estatura que gostaria de ter. Não fizera pós-graduação. Não falava uma segunda, nem mesmo uma terceira língua. Não dominava a informática. Não dirigia. Não tinha cartão de crédito - o que a alijava das compras pela internet e do mundo dos mortais, e, o mais grave, gravíssimo, não trabalhava - portanto não declarava Imposto de Renda e muito menos podia sustentar-se sozinha.

Amélia relata que havia pensado em se mudar. Mas não tinha para onde. Não tinha dinheiro. Não tinha bens. Não tinha coragem. E, ainda  por cima, tinha medo. Medo e um ranço machista que crê que se a mulher sai de casa não tem direito aos filhos os aos bens. Bens? Que bens? O único imóvel que possuía é assinado igualmente por ela e pela parte contrária, que, apesar de não saber onde fica o açúcar, suas próprias cuecas e com quantos quadradinhos de vidro as janelas são feitas, ainda se presume senhorio e se nega a sair ou a lhe deixar ficar.

Maria Amélia, resignada, se sentia massa falida. Massa amorfamente falida. Contudo, pesquisando, deparou-se com a seguinte definição: abre falência aquele que não consegue arcar com o ônus de suas despesas, o inadimplente.

"Falência é uma situação jurídica em que uma empresa ou sociedade comercial fica impossibilitada de honrar as suas obrigações e realizar os pagamentos devidos aos seus credores, porque o valor das suas dívidas (passivo) é superior ao valor do seu patrimônio (ativo)."

Essa pessoa, definitivamente, não era ela. Maria Amélia conta que sempre honrou suas obrigações e, quanto ao seu patrimônio sentimental, seu ativo é infinitamente maior que o seu passivo.

Faço a seguir a defesa de Amélia: ela nunca deveu nada - a ninguém - nunca pediu, nunca mentiu, nunca traiu. Pelo contrário, ao longo desses anos todos - que não podia  precisar como gostaria - eram vinte, mas a parte contrária conta apenas como 15 - aliás, a parte contrária conta apenas do nascimento do filho mais velho pra cá, como se nada hovesse antes..., bem, ao longo desses 20 ou 15 anos, havia se dedicado ao trabalho árduo, ingrato e não reconhecido de dona de casa prestimosa e mãe zelosa, a tal verdadeira Amélia, a mulher de verdade.

Por sua própria conta e risco, verdade seja dita! Nunca, jamais, em tempo algum, foi pressionada a algo. Até dissuadida já fora, mas havia aguentado firme. Resistiu. Achou que valia a pena. Ela se afastou dos familiares, dos amigos, da profissão, da cidade, dos bens culturais. Abraçou, por vontade própria, outra causa, outra cidade, outra forma de vida. E caiu em sua própria armadilha. Incompreendida aqui, lá, acolá.

E ainda assim Amélia não estava devendo nada: fizera tudo o que deveria ter sido feito, sempre acompanhando de perto o andamento da casa, os filhos e o marido. Ficou sozinha com suas crianças pequenas todas as vezes em que se fizera necessário, em virtude da vida profissional atribulada da parte contrária; ficou sozinha com suas crianças pequenas todas as vezes em que não se fizera necesário, em virtude das festas, passeios ou viagens que ela, simplesmente, não poderia ir por não ter uma outra pessoa que cuidasse dos filhos.

E Amélia ainda passava as camisas, opinava sobre o perfume, fazia bolinhas nos pares de meia e guardava junto com as cuecas na gaveta. Com zelo e alegria. Relata, ainda, que no "retorno do guerreiro", o almoço e o tira-gosto estavam sempre prontos, assim como o copo preferido e as cervejas no freezer - após devidamente higienizadas, é claro. 

As pressões psicológicas, as opiniões divergentes, as atitudes discrepantes não vêm ao caso, já que a tudo Maria Amélia aguentou por acreditar que valia a pena. Com certeza, tinha também sua parcela de culpa (para dar no que deu, nesse descaso em que se transformou aquela sociedade?!). O que lhe doía, contudo, era saber que o público externo acreditava que ela não via a diferença entre eles, os amargores... enfim, nunca fora alienada. Sempre viu tudo, mas sempre acreditou que estaria tudo bem assim, que ainda valia a pena assim.

Mas tudo sempre acaba. Amélia descobriu, sabiamente, que quem muda somos nós - e não o outro. Então ela mudou. Pouco, é verdade. Mas mudou a direção. Na sua viagem de 360°, reencontrou o caminho de onde partiu. Reencontrou o seu eixo. E agora segue pelo outro lado da bifurcação.

Ela pode estar, inicialmente, se sentindo massa falida. Mas não é. Nunca teve medo dos seus investimentos: de chorar suas lágrimas, de tentar recomeçar, nunca teve medo de aguentar mais uma vez. E é exatamente por isso que agora não vai ter medo de escolher seu novo caminho.  O desapego é difícil. Podar hábitos arraigados é difícil. Beber uma cerveja sozinha num bar é difícil. Mas só que agora Maria Amélia sabe que é possível, pois é o seu mais puro desejo.

Enquanto narra esta história, Maria Amélia atravessa o seu olhar por um dos quadradinhos de vidro da janela da sala de visitas (a propósito, são quatro janelas com 40 quadradinhos de vidro cada) e, além das árvores e dos telhados das casas vizinhas, vê uma vida lá fora que também está pronta para ela.

Sendo assim, este não é um aviso de decretação de falência. Mas continua sendo apenas a quem interessar possa, visto que, conforme o estimado jornalista e filósofo Barão de Itararé, "a vida pública é uma continuação da privada..."

Dando tudo por bom e valioso, cessam os efeitos deste instumento a partir do seu desfecho. Por serem verdadeiros os fatos, atesto e dou fé pública.

2 comentários:

  1. 01h06 - "Ainda tem azeite?"...
    Maria Amélia não morou aqui, mas passa de vez em quando, deixa marcas, lembranças, sonhos...
    "Nunca vi fazer tanta exigência
    Nem fazer o que você me faz
    Você não sabe o que é consciência
    Nem vê que eu sou um pobre rapaz
    Você só pensa em luxo e riqueza
    Tudo o que você vê, você quer
    Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
    Aquilo sim é que era mulher

    Às vezes passava fome ao meu lado
    E achava bonito não ter o que comer
    Quando me via contrariado
    Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!"
    Amélia não tinha a menor vaidade
    Amélia é que era mulher de verdade"

    Quem sabe que quem nunca foi Amélia é que está errada? Quem sabe?...

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  2. Tá tudo bem com vc? Quer conversar?

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