segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A história de Patscot

Patscot nasceu num aquário. Pequenininha.
Ela é um polvo. E já nasceu com aqueles olhos negros.
Patscot poderia ser assim descrita: cérebro, olhos, braços, coração.
Mas apesar do aquário, a vida toda Patscot quis ousar, quis ir muito além dos seus limites.

Patscot fez alongamento. Esticou seus braços e foi se esgueirando para fora daquela redoma de vidro que havia lhe protegido a vida toda. E ganhou o mar. Um oceano de oportunidades.
Patscot, então, achou por bem nadar para todas as direções, conhecer cada recanto daquilo que havia sonhado em conquistar, mapear todos os seus possíveis e impossíveis caminhos, exercitar ao máximo a sua inventividade, enfim, colocar toda a força de sua engrenagem para funcionar.
Desde então, Patscot se reinventou.

Cada braço segura um destino e se guia por um caminho.
Patscot cria, inventa, comanda, delega, pragueja, negocia, sustenta suas crias, recomeça a caminhada, ama, odeia e volta a amar de novo.
Patscot anda, dirige, corre.
Come, bebe, dorme.
Ama,  trabalha, sonha.
Mas quase não descansa!
Patscot acorda cedo e dorme tarde. Muito de vez em quando faz o oposto, só pra contrariar.
Patscot fala muito. Sabe ouvir também, mas é muito melhor no falar.
Patscot hipinotiza com aqueles olhos negros, consegue qualquer coisa da gente.
Patscot nada pra cima e pra baixo, cansada e feliz, querendo ainda ter tempo para outros sentimentos. Patscot não sabe, mas já é nobre. Desde sempre. É toda coração. É dedicada. É complicada. Mas é simples e gentil.
No fim do dia, Patscot se refresca com as algas, os sais e as espumas do mar. Vai pra praia e fica olhando, procurando nos grãos de areia...  Patscot vira sereia e pode dormir tranquila. 

domingo, 28 de novembro de 2010

A teoria do fio

Para Patrícia Del Carlo, fio infinito

Vou lançar aqui a teoria do fio.
E o que vale é o que vale.

Nós estamos ligados.
Somos um fio tênue e invisível que se amarra.
Um ao outro.
Dia a dia.
Numa existência infinita.
Ocorre que às vezes acostumamos tanto com o fio que já nem ligamos muito pra ele.
Ficamos tão confiantes com o tal, que damos corda, vamos longe, como pipas alegres ou fugidias, voando por céus longínquos e buscando novas experiências.
Mas o fato é que somos um mesmo fio.
Um fio de amor com uma ponta perto, outra longe.
Uma ponta amarga, outra doce.
Uma ponta alegre, outra triste.
Uma ponta forte, outra frágil.
Vamos voando pelo céu da nossa existência, experimentando e vivenciando seus diversos estágios.
Ora tensionados, ora livres. Com propósito ou sem. Mas no fundo (que bom) esse fio nos faz ver também que somos pipas coloridas, leves, lindas, corajosas e com uma rabiola incrível... que desenha no azul do céu o mais lindo e infinito desenho: o amor.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Aprendizagens com a chuva forte

A terra escorre.
Se transmuta: fica líquida e se dissolve, foge, vai embora.

A água evapora.
Sobe pelo ar. Suas moléculas se modificam e fogem, vão embora.

A mata se contorce.
Árvores e galhos envergam, se retorcem. As folhas fogem, vão embora.

Instala-se o caos.
Tudo se desmancha, se deforma.
Tudo se modifica, se altera.

Mas depois, com a estiagem, as coisas voltam

e se firmam
e se endurecem
e se fortalecem


A caminhada é feita com um passo após o outro.
Sempre.

Tudo muda e muda muito.
Tudo volta e não volta igual.
Volta mais forte - compactado.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A toalha de banquete

(Para o mais recente almoço em família: Leninha, Marcão, Ritinha, Reviane, Danilo e eu - 13/11/10)

Na sala de jantar tenho uma mesa de madeira rústica com dois metros e meio de comprimento e seis cadeiras. A depender da ocasião, banquinhos são improvisados e sempre cabemos todos na hora da refeição. Nessas ocasiões especiais, gosto de usar uma linda toalha branca, própria para banquetes.

Quando meus amigos chegam em casa, sempre há uns petiscos, uns aperitivos, uns brindes antes da hora do almoço. Travessinhas e cumbuquinhas são dispostas na mesa nua, contra o tampo rústico. Copos vão se enchendo, esvaziando e derramando durante os preparativos.

O fogão em pleno funcionamento, as conversas, as risadas, as novidades e chega a hora de pôr a mesa. Alguém sempre se oferece para ajudar. Então, é a vez da toalha branca aparecer.

A velha toalha adamascada tem manchas de todas as cores e formatos, mas é ela quem melhor "veste" a mesa. Não são simples manchas, são marcas das taças de vinho e dos copos de cerveja e de refrigerante, de tantos brindes nas ocasiões especiais. São marcas dos caldos suculentos e gordurosos ou de tantos lombos de porco, costelinhas, picanhas, enfim, carnes temperadas de véspera e tão macias que quando assadas ficam a ponto de desfiar e  despencar no ar, na hora de servir o prato. Marcas de um arroz tão soltinho que acaba voando da travessa. Marcas doces das sobremesas sempre presentes: compotas, doce de leite, bolos de chocolate, pudins com calda caramelada. Marcas de feijoada. Marcas de laranja, sempre formando uma montanha de cascas. Marcas de macarrão com o molho da "mamma" e frango assado de padaria. Marcas de gotas de vela derretida. Marcas de uso. Marcas de vida.

Gosto de ver minha toalha branquinha ganhando uma nova mancha. Gosto de falar: Não faz mal! Não tem problema! A toalha é só lavar, mas este momento é único!

Gosto de receber amigos e gosto de comemorar em família. Gosto da casa e da mesa cheia. Gosto da aflição de fazer tudo a tempo para agradar. Gosto de servir.

Mas gosto muito mais ainda de me sentir gostada, amada, realizada, de ver que o almoço foi um sucesso porque nele não faltaram os ingredientes principais: amor, amizade, alegria do reencontro, vontade de nos revermos, compromissos de fidelidade, não aquela... mas a outra, a simples, a fidelidade do olho no olho e sentir que é bom estarmos aqui e agora.

Uma casa bonita, uma mesa farta, uma toalha branquinha? Sim, são todos elementos importantes. Mas nada se compara ao valor dos amigos. Uma mesa cheia de amigos é o melhor presente que alguém pode ter. Por isso minha casa é sempre aberta, minha mesa é sempre cheia, assim como o meu coração.


Escovando os dentes na janela

Ninguém sabia que Jurandir escovava os dentes na janela.
Embora cultivasse esse costume desde criança, ninguém sabia ou ao menos nunca havia comentado esse hábito curioso.

Quando criança, Jurandir morava num apartamento de frente para o mar, no primeiro andar. Ela fazia desse momento íntimo, desse gesto simples, uma pausa para reflexão. Embora fosse tão pequeno, gostava de aproveitar o tempo - pelo menos aqueles dois ou três minutinhos, no máximo - sentindo o vento no rosto, o cheiro de mar, ouvindo o barulho das ondas, sentindo o calor do sol, a brisa cortante cheia de sal, enquanto escovava os dentes e pensava na vida. Pensava em coisas simples de criança, em como seria o seu dia na escola, ou de que iria brincar na volta, ou verificava consigo mesmo se já havia arrumado os livros para a aula. Era como se Jurandir organizasse seus pensamentos. Era uma agenda mental passada a limpo. Agenda de criança, com todas as suas diversões e brincadeiras.

Hoje, adulto, Jurandir mora numa cidade grande, terceiro andar, de fundos. E continua escovando os dentes na janela. Ele gosta de pensar que seu apartamento, mesmo sendo de fundos, tem uma visão privilegiada em relação aos apartamentes de frente. Enquanto para estes a rua é barulhenta e infernal, colada com os outros prédios da frente e invadida por um ininterrupto barulho de carros e ônibus, para ele, nos fundos, a rua é mais calma, e o que se vê são os quintais das outras casas vizinhas e prédios, com seus cachorros cochilando ao sol do meio-dia, com jardinzinhos capengas e abandonados, que as pessoas acreditam não serem notados, com roupas no varal, com cacarecos jogados e amontoados nos cantos. Vê-se partes, pedaços de projetos e sonhos largados ou mesmo belos e viçosos jardins bem cuidados, rosas floridas demonstrando zelo e capricho, espaços projetados de famílias bem-sucedidas.

Da janela de fundos de Jurandir, vê-se também a avenida principal do bairro, que corta de fora a fora seu ângulo de visão. Vê-se as árvores plantadas há mais de quarenta anos, pássaros que teimam em bicar as goiabas remanescentes nos quintais. Vê-se pessoas passeando com seus cachorros. Vê-se a vida do bairro fluindo num cotidiano ensolarado da hora do almoço.

Todo dia Jurandir põe a pasta na escova e se encaminha para a janela. Abre-a completamente. Ele sabe que ninguém estará olhando pra ele. Mesmo que outras pessoas possam vê-lo, não desviarão seu olhar e sua atenção para uma triste figura de pé, escovando os dentes numa janela, durante uns dois ou três minutos, no máximo.

Enquanto a escova passeia por entre molares, pré-molares, laterais, incisivos e centrais, inferiores e superiores, faces internas e externas, Jurandir se deixa fugir. Seus olhos percorrem os quintais, garagens, árvores, carros e transeuntes. Sua mente vagueia num ínfimo tempo de constatação e reflexão.

A escova massageia seus dentes e pensamentos. Quando vai escovar os dentes após o almoço, pela sua janela vê que há aqueles dois sentados no barzinho da esquina. Há a mulher que lava panelas naqueles degraus perto da cozinha da casa dos fundos. Há a dona da casa embaixo de sua janela, aquela que sempre faz festas, varrendo o quintal. Há o homem que fala alto e grita, será que tem problemas de cabeça ou bebeu demais? Há crianças indo e voltando para a escola.

Jurandir termina. Minutos, apenas. Uma agenda mental passada a limpo.

Um dia, enquanto Jurandir estava no seu ritual diário de higiene bucal e mental, um caminhão da prefeitura parou na avenida para realizar uma operação de poda de árvores, pois os galhos estavam por demais atrapalhando os fios. Um homem subiu numa grua e invisivelmente iniciou o seu trabalho.

Jurandir ficou ouvindo aquele barulho medonho da serra elétrica e observando o homem fazendo o seu trabalho compenetrado. Ambos, Jurandir e o homem. Terminaram. Ambos, Jurandir e o homem.

Então, o homem acenou. Fez um gesto esquisito, uma espécie de continência e depois sinalizou para seus companheiros que havia terminado e era hora de descer.

Engraçado, até aquele dia nunca souberam que Jurandir escovava os dentes na janela, apesar de ser um hábito que cultivava desde criança.

Aviso aos navegantes

Ter medo é muito simples
Ter medo é muito fácil
Ter medo é muito raso

A gente se acostuma com o ter medo
ter medo e não fazer nada
ter medo e morrer na praia
ter medo e ficar paralisado
 Ficar parado

Tive medo por muitos anos. Meses. Dias. Horas e minutos.
Meu único medo agora é continuar a ter medo.

O medo de dirigir é o medo de ir, enfrentar o novo caminho, tentar uma nova saída
O medo da tecnologia é o medo do controle sobre si e sobre o novo, mutante a toda hora
O medo de se expor é o medo de ter direito a cobrar, a querer o bom e com razão

Pois bem, até agora andei a pé, escrevi em máquinas antigas e fiquei calada
Mas comprei um par de tênis, um netbook e um megafone.

 Tudo tecnológico e moderno
Equipamentos portáteis, que eu possa carregar comigo nesses novos caminhos que estou trilhando

Ok, eu estou bem
Ok, eu corro
Ok, eu falo

Ainda escuto muito
Ainda ando a pé
Ainda gosto de maquinárias antigas
Só que agora é por opção

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A história de Dolores - parte 1

Quando Dolores voltou de Lisboa, trouxe consigo sua máquina de escrever portátil. Nela havia um adesivo colado escrito frágil. Há que se lembrar que naquela época ainda não existia internet, tampouco notebook.

Durante as onze horas de voo entre os dois continentes e as duas conexões, a máquina ficou no colo, lembrando-a das coisas que tivera de deixar para trás, pois já estava com treze quilos de bagagem a mais - só de livros. Dentre esses pertences abandonados ao destino, estava a coleção das cartas da mãe.

No avião pensou que a única pessoa que a entenderia seria o Henfil, embora ele mesmo já houvesse morrido. Quando Dolores era pequena, não sabia quem era o Henfil e muito menos o seu irmão. Hoje em dia, alguém sabe? alguém ainda conhece as cartas da mãe? Pois bem, para Dolores, era esse um tesouro imenso que precisou ser sacrificado.

Quando de sua permanência no velho mundo, foram as cartas que lhe trouxeram refúgio, ternura, notícias, palavras encorajadoras, conhecimento daquilo que estava acontecendo na sua ausência. As cartas personificavam a mãe. As cartas eram a mãe. Por isso é que custou-lhe tanto ter de abandonar a mãe, no meio da rua, jogada ao relento, no bairro Lumiar.

Mas não era só pelas cartas que Dolores se ressentia. Tivera de deixar toda uma vida. E é por isso que olhava fixamente para o adesivo escrito frágil da máquina de escrever pesando sobre o seu colo nas onze horas de voo.

Frágil, frágil, frágil. O que seria dali para frente, Dolores resolveu conferir quando, em terra, usou a ficha telefônica que tinha guardado esse tempo todo como se fosse um talismã. Uma ficha com a inscrição TELERJ e que lhe permitia falar por três minutos numa ligação local. Há que se lembrar, também, que naquela época, no Brasil, os telefones públicos funcionavam assim, com fichas, diferentemente das ligações da Europa que eram feitas em cabines e com a moeda local. 


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Comprei um par de tênis

Hoje vou começar a correr. Digo, a voar.
A vida toda sempre esperei muito. Muito de mim, muito dos outros.
Sempre fui esperançosa. E continuo.
Mas acontece que esperar cansa.
Então, decidi voar.
Correr.
Ir atrás.
Só que não foi assim fácil, uma ideia pá, pum. Não foi uma decisão certeira, direta, ágil. Ela veio se instalando devagar, veio se esgueirando sorrateiramente para o meu inconsciente até que um dia eu sonhei.
Sonhei que estava numa praia deserta correndo muito, como uma atleta. A areia era dourada e a praia era uma extensa faixa contínua e linear, que ia looooooooge.
A cada pisada na areia, conchas enormes surgiam marcando o meu caminho. Parecia que eram presentes. Porém, mais que presentes do mar, elas eram presença marcante no meu trajeto. A prova de que eu havia merecido cada passada daquelas.
Não acordei cansada, suada ou com sede. Ao contrário, a sensação que tive foi ótima. Revigorante. A vontade que tive foi de levantar e começar a correr naquela hora mesmo. Mas, e a praia? e a areia dourada? De novo, apenas guardei o sonho na gaveta.
Até que essa imagem começou a ser mais recorrente a cada dia, insistente nos momentos mais variados que apenas alguém comum pode ter: tomando banho, vendo televisão, almoçando, estudando, pendurando roupa no varal, lendo jornal, bebendo café, até mesmo caminhando. Basta!
O quê - e x a t a m e n t e - estava faltando para começar?
Será que quando a gente corre a gente para de esperar?
Se quem espera sempre alcança, alcança mais rápido quem chega correndo?
Não sei. Mas tenho para mim que as dúvidas da caminhada são muito mais angustiantes porque demoram mais. São muito mais lentas. E eu tenho pressa.
Não é possível que alguém seja fadado a esperar parado. Quero esperar correndo.
Decidi correr pra ver.
Comprei um par de tênis.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pegada flower power

A vida tem que ter sabor. Bom.
Levamos uma vida muito regrada, muito compromissada, muito sóbria.
Acordamos cheios de compromissos e vamos dormir já comprometidos com o rendimento do amanhã.
Não sobra prazer, não sobra diversão. Aliás, falta.
A vida assim é muito chata.
Proponho uma pegada flower power.
Quero a alegria da cor do sol, o sabor dos ventos, a sensação do caminhar livre, descalço.
Quero ouvir o barulhinho das águas, das aves, das ondas.
Quero os cheiros todos a que tenho direito:
maresia, terra molhada, fogão a lenha, estrume de vaca, flores do campo, café quentinho, cachorro molhado, flor de laranjeira, chuva de verão, bolo saindo do forno, cheiro de cavalo galopante, cheiro de roça, cheiro de montanha, cheiro de mar.
Flower Power são meus olhos, são meus ouvidos, são minhas mãos e meus pés.
Flower Power é o meu coração. Sou eu inteira nos anos setenta, braços abertos, peito aberto, cabelos abertos ao vento, que passa por mim e não me derruba; que passa por mim e me firma ainda mais.
Contagiar e ser contagiado por uma mente aberta...

Eu sou flower power. E você?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sou cozinheira

Mas alguns pratos eu nunca irei fazer. Um deles é feijoada. Amo. Adoro. Com todos os seus rituais já escritos, descritos, cantados e saboreados. Mas nunca na minha vida  irei fazer uma feijoada. Claro que sempre que me convidarem, irei, sim, comer, saborear uma belíssima feijoada. (já estou até com água na boca!). Mas o problema reside no fazer desse digníssimo prato nacional, que envolve muito amor, muitas histórias de amor. Não que eu não tenha amor, também não é isso. Mas acho que a pessoa nasce para tal. Ou não. O tal, no caso, é saber fazer. É a responsabilidade do fazer.

Na minha infância, era a Tia Julieta quem fazia uma farta feijoada para a família toda. No apê da praia. Calor de verão de 40 graus. E o caldo borbulhando, a vizinhança sentindo o cheirinho, a criançada voltando toda cheia de areia e indo tomar banho pelo sistema do rodízio avisado pela toalha na janela... bons tempos... tive nessa época uma toalha vermelha de flores brancas. Era a mais chamativa de todas. Quando eu hasteava minha "bandeira" ao vento, o próximo chegava correndo para o banho e aquele que já tinha acabado ia ajudar na cozinha. Bons tempos!

Depois, minha mãe passou a fazer a feijoada da família. Mais discreta, com menos estardalhaço. Muita laranja picada. Muita couve picada. Claro que também era muito saborosa, mas sem as delícias das confusões infantis, da família toda reunida e sem a presença de minha avó. Digamos que uma feijoada sem fado era para nós muito triste.

No meu aniversário de 28 anos, quem fez a feijoada foi Omar. Minha barriga estava com quase nove meses e o local foi o apartamento da rua Nilo. No paraíso. Engraçado, sempre quis escrever um conto que começasse assim: "Uma vez, vivi no paraíso"... Essa feijoada já foi bem diferente. Bem adulta. Com novas responsabilidades chegando. Diria que foi quase uma feijoada contida, apesar da muita cachaça e da muita cerveja. Foi a primeira dessa nova era.

Desde então, Omar vem assumindo o papel de Mestre Feijoeiro. Já foram tantas, que perdi as contas. Vinte anos de feijoadas afora. Um ritual que se inicia na véspera, com os planos, as compras, e os pertences escolhidos um a um, na Feira dos Produtores, diretamente de comerciantes amigos, que nos oferecem a melhor costelinha, o melhor lombinho defumado, orelhinhas, pezinhos e rabinhos pra ninguém botar defeito.

Então, no dia seguinte, os trabalhos começam cedo. E lá vai ele, quase como um general, comandando com seu avental aquelas panelas, as quatro pequenas bocas do fogão, e nós, seus assistentes. Toda vez ele diz que vai comprar umas panelas maiores. E faz planos para o futuro. Num instante a manhã se passa, num rodízio sem fim de caipirinhas acompanhadas de uns petiscos e de um tanto de conversa jogada fora.

O cheirinho arrebata a casa toda e o aroma do feijão se mistura ao amor. Tem-se a impressão de que serviremos um batalhão. Mas o quórum, agora, já é menor. Quando a feijoada fica pronta, o pequeno grupo se prepara para o ataque e se ajeita para o mais puro deleite. E é aí, nesse momento suspenso no ar,  uma hora mágica, talvez, que o tempo do relógio para e o universo se divide em dois grupos: os que nasceram pra fazer uma feijoada e os outros.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

De como se passou um ano inteirinho, que me consumiu em um árduo projeto, que me consumiu em uma árdua espera e me fez sentir órfã até aparecer uma nova opção. Ou de como perseguir um objetivo

Fui para
Porto
Alegre
Voltei
Gerais
E agora?
Sigo a
Vitória

Sujeito indefinido

Eu me defino como uma pessoa
ácida
cheia de lágrimas
e poucas palavras - apesar do humor

Eu me defino como uma pessoa
em estado líquido
forma sólida
e pensamentos gasosos

Eu me defino como uma pessoa
marcada
ao invés de marcante
acuada
em vez de atuante
dominada
em vez de dominante

Eu me defino como uma pessoa
extremada
entre pares dançantes:

calada - falante
parada - reinante
fadada - errante
pasmada - gigante
desamada - inconstante

Eu me defino como uma pessoa só
 - dissonante
Eu me defino como o óbvio ululante