domingo, 29 de janeiro de 2012

Uma falsa baiana

A mais animada das praças do Jardim da Penha é a minha. É também a única que tem "barzinhos" com mesinhas na calçada. Tais "barzinhos" são carrinhos transformados em lanchonetes, rodeando toda a circunferência da praça, nos guiando por aromas tão variados quanto os quitutes que podemos encontrar.

Pastéis dividem a clientela com espetinhos, tutus e tropeiros, yakisobas com churros, crepes, sanduíches e bolinhos de bacalhau, bolos e bombons, frango com polenta, cervejas, refrigerantes e sucos, e uma infinidade que só mesmo rodeando a praça para saber, para desfrutar de todos esses sabores nas noites quentes de verão.

Hoje fui rodear a praça. Fui seguindo os aromas. Queria parar onde me chamasse a atenção. E foi lá que os meus olhos pararam. Na barraca da Baiana Aurora. Que vendia acarajé, é claro.

Pensei em sentar e provar. Mas não consegui. Tentei ser tolerante à diversidade. Mas não me foi possível.
e por isso, desde já, peço desculpas.

De pé, ao lado do tacho de dendê quente, a baiana Aurora fritava seus bolinhos. Alta. Magra. Loura. Olhos azuis. Roupa de Chef. Calças compridas.

Parei em frente à sua barraca e fiquei imaginando Jorge, como ele reagiria? João Ubaldo? Tudo bem, diria Caetano, pois toda menina baiana tem um encanto, que deus deu, que deus dá... mas baiana de acarajé magra? loura? de calças? Faço aqui um aparte (também quero me defender de ser chamada de intolerante, preconceituosa, politicamente incorreta e sei lá...). O problema não é o tipo físico em si da baiana, e sim a falta de compromisso com o acarajé...

As baianas de acarajé da Bahia são parte do patrimônio humano imaterial soteropolitano e brasileiro. Mesmo com pouca roda, a sua saia é marcante, a bata, talvez o pano da costa, o ojá na cabeça, as muitas contas em fio e os enfeites... eu sei, eu sei, entendo, a abstração. A baiana estilizada. A baiana em outro estado. A baiana de hoje. A baiana moderna. A baiana chef... A baiana fritando....

Não, pra falar a verdade eu não entendo. Não é a baiana. É apenas alguém fritando bolinhos...

Sei que há quem goste, pois para tudo há um público, mas a falsa baiana Aurora que me perdoe. Não comi o seu acarajé. Nem volto lá. Sou apegada a algumas tradições. E essa vai ser mais uma: acarajé, agora, só com baiana de verdade.









sábado, 28 de janeiro de 2012

Estou com raiva de Frejat

Ele de novo. 

O Frejat.

E tudo o que representa. 
Ou significa. 
Ou simbolizou.

Eu, que já fiz as pazes com Frejat, agora rompi relações.
Outro dia ele me disse (em rede nacional) que estava feliz da vida, radiante, nos seus cinquenta anos, que nunca esteve em melhor momento, tanto em sua vida profissional, quanto na pessoal e familiar.
Como assim?
Como pode?
Eu que ouvi todas as suas canções, baladas de amor, que achei que fossem pra mim?
Eu acreditei, Frejat, que você iria me encontrar "numa fila de cinema, numa esquina, ou numa mesa de bar". Você não sabe o quanto eu venci, pra poder estar nesses lugares... 
Você não sabe quantas barreiras tive que romper....
E agora, agora, que já tenho meu cinema preferido, minha mesa preferida, 
que já fiz meus próprios caminhos... é assim?
Simplesmente assim? 
E todas aquelas promessas? "Procuro um amor, pra recomeçar"
...quer dizer que não era verdade?
"Você me disse que afinou os seus ouvidos"... 
"aquela rede invisível", e "eu vou em frente"...

Rompemos. 

E olha que vai ser difícil eu te perdoar de novo, fazer as pazes.
Agora sou "eu que não sei dizer te amo".

****
Ou melhor. Agora sou "eu que preciso dizer que eu te amo".
Pro Cazuza.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Outra Dolores

Dolores. Lola, para os mais próximos. Tanto fazia. O fato é que ela assumia sua identidade sem nenhum constrangimento. Por mais que lhe dessem nomes fortes, brilhantes, guerreiros, não passava daquela pessoa simples, que tinha como seu único feito heroico o fato de ter continuado a caminhar. Para frente.

Dolores acordava cedo todos os dias. Muito cedo. O que àquela altura do ano era um refrigério, visto que o sol já estava a pino muito antes das sete da manhã. Mas o que quero mesmo contar é que para ela acordar cedo era uma bênção, pois, assim, sentia sono à noite e não sofria com as insônias dos meses anteriores.

A noite era para ela a pior parte do dia. O momento em que estava só, consigo mesma, sem responsabilidades, sem ordens, sem metas a cumprir. Estava só, consigo mesma, e por sua conta. E por isso era a pior parte do dia.

Dolores chegava em casa e tirava os sapatos. Tirava a roupa e tomava um banho gelado. Ah, as maravilhas do verão. Abria uma garrafa de vinho e então começava a se despir. Despia-se da boa funcionária que era; despia-se da boa mãe que era; despia-se da boa vizinha que era; despia-se da boa colega que era; despia-se da boa filha que era; despia-se da boa mulher que fora.

Dolores, nua, consigo mesma, sentava sua alma de frente para o computador e começava a escrever. Pensava numa história, num romance, num poema, e as palavras saiam mudas de sua boca, passavam pelos seus dedos, filtradas pelo coração, e se quedavam naquela pequena tela de dez polegadas.

Dolores enchia e esvaziava taças. Às vezes ouvia música, às vezes via tv, às vezes conversava nas redes sociais, tudo ao mesmo tempo em que escrevia e buscava se inspirar.

Dolores gostava de pensar nos grandes escritores do passado, nos grandes poetas. Como deveriam sofrer, escrevendo à luz de velas papéis esparsos; quantos lápis e canetas pousados, enquanto um longo suspiro inundava aqueles ambientes... quantas xícaras de café, quantas doses de cachaça, quantas taças de vinho devem ter sido derrubadas em manuscritos que se tornariam clássicos nos dias de hoje... quanta solidão a escrita provocara...

Então, entre um suspiro e outro, Dolores soltava uma frase. Sustentava o olhar em algo vago, vasculhava sua memória, suas lembranças e ficava procurando um sentido para aquilo que escrevia. Sempre se justificava. Mesmo que aquilo não fosse nada, não tivesse sentido algum, não ficasse para a posteridade - como o pai costumava dizer - ela escrevia. Longe dela, muito longe, querer se comparar a alguns daqueles escritores que evocava em pensamento. Mas, de todo modo, o ofício era o mesmo (ainda que a arte final não o fosse), ofício tímido, único, solitário e sofrido de exprimir-se no papel, espremer-se toda, entre suspiros, soluços, e imagens fluidas, que depois de prontas ficariam ali, pra sempre. Fechadas na gaveta, presas na tela, guardadas na memória. Ninguém poderia rasgá-las. Ninguém.

Mas como eu contei, Dolores gostava de acordar cedo. Muito cedo. E já era tarde. Todos esses pensamentos embriagados já passavam da meia-noite. E mais um dia, graças a deus, mais um dia tinha se passado, sem a angústia da insônia rondando Dolores.

Dolores salvava o texto. Salvava-se. Mais um dia de sobrevivência de Dolores. Amanhã seria outro dia.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Oceano

(Para Leninha, amiga querida, que suavemente me inspirou) 


Troquei o mar por um oceano...

sou peixe, sou peixe, sou peixe...

alguém me fez lembrar
alguém que gosta de mim

Estou no píer. Olho para o horizonte, para o céu azul, coroado de brancas nuvens.
Atravesso o longo deck. O mar está verde. Esmeralda líquida.

Ele me chama. 
Enfeitiçada, eu vou.
Me atiro. 
De cabeça. 
Mergulho.

Meu corpo ondula debaixo das ondas.
Infinitamente.
De repente, aparecem as escamas, a cauda.
Minhas guelras se abrem
Meus braços agora são nadadeiras.
Meus longos cabelos não me atrapalham.
Nadei. 
Infinitamente
por apenas alguns momentos.

Debaixo d'água somos um só: eu e o oceano.

A mesma água salgada que sai dos meus olhos está agora reposta.
Recolocada eu mesma, em meu lugar.

sou peixe, sou peixe, sou peixe.

Saio do mar mas a água fica em mim.

salgada

me lembrando de que ele existe. ele existe. ele existe.

O oceano é maior, é infinito, e também está comigo agora. 

transformado
transmutado

e então vejo que ele e eu somos um só.

Esmeralda líquida.

Água salgada que entra e sai.

sábado, 21 de janeiro de 2012

A velha estação de trem

Eu já me despedi de alguém numa velha estação de trem.
Europeu. Elitizado.
O trem e o meu amor que partiu.

E eu voltei pra casa sozinha, à noite,
dentro de um sobretudo negro pesado,
mais pesado que as dores da minha alma.

O trem e a gare,
Santa Apolónia,
a estação da qual meu amor partiu.

Voltei para casa a pé, mãos nos bolsos,
cabeça baixa
e a certeza de um fim.

Tão jovem, 18, 19 anos,
andando cabisbaixa na estação de trem.

Naquela época, mal sabia eu quantos amores teria pra me despedir.
Um é sempre único.

Cada um é único.
Princípio e fim de uma história singular.

Tantos anos se passaram
outros novos amores vieram e se foram.

E em cada partida a mesma dor.

O som ao fundo, do apito de trem...

A voz rouca, de músicos de jazz...

O barulho da porta se fechando...

O som das chaves, o molho de chaves, agora reduzido à metade...

A vida transportada em sacolas...

A angústia das palavras não-ditas, malditas...

O coração partido e a eterna vontade de recomeçar.

a volta

Tem gente (dentro de mim, e por isso)
tudo me dói.

Precisei tirar os sapatos
para conhecer as calçadas
A infância das calçadas
no meu caminho de volta.

Apesar de ser noite,
o chão estava quente.

Pisei em folhas
no meu caminho de volta.

Olho o relógio e não vejo as horas.

Mas sinto os meus pés pressionando o chão.

Meu caminho de partida não tem volta.
Mas mesmo assim, senti necessidade de caminhar com meus próprios pés
no meu caminho de volta.

Tudo me dói

tudo me dói
o que vejo
o que escuto
o que toco
o que cheiro
o que deixo de provar.

tudo me dói e se apega em mim,
me deixando pesada,ancorada
sem forças para me levantar.

tudo me dói e não vejo para onde ir.

tudo me dói
mas preciso continuar a fingir.

enxugo as lágrimas com um papelzinho.
pronto. saí de fininho.

Rasgue tudo

Me pediram para rasgar tudo.
Me ofendi, profundamente.

O tudo é o nada.
É tão pouco.

Alguém se envergonha das minhas palavras, dos meus escritos.
Alguém que nem se importa me pediu para rasgar tudo.

Mas não consegui me rasgar por dentro.

O tudo é tão pouco.
O tudo é a minha alma.

Como eu podeira rasgá-la?
Não consegui rasgar tudo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Cicatrizes

Não ostento símbolo algum do matrimônio,
mas carrego cicatrizes comigo.

Duas no ventre,
uma no coração.

As da maternidade são leves, quase imperceptíveis.

A do coração, profunda.

Talvez as primeiras sejam leves por representarem quem está sempre presente.

A outra, inversamente significa.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

tenho estado exausta

não bastassem minhas tarefas diárias, precisei hoje enfrentar duas feras, dois seres animalescos e pré-históricos:

uma barata e uma lagartixa.

antes de eu ser ridicularizada, quero ter o direito à defesa. Auto-defesa, já que sou somente eu por mim mesma desde sempre.

a primeira era voadora. adentrou a paz de meu lar, varanda a dentro, de onde eu jamais supunha vir tanta maldade, dadas as belezas matinais que me contemplam diariamente.

a segunda, alojada no chão do meu banheiro. no meu banheiro... salvei minha escova de dentes e interditei o local.

meditei por longos minutos e fiquei a me questionar:

não bastasse o mal feng shui da minha janela do quarto ter uma rua apontando pra mim, vetor de um péssimo trânsito; não bastasse o poste de iluminação da rua no ângulo certo do meu travesseiro; não bastasse o barulho dos lixeiros de madrugada, no melhor dos meus sonhos; não bastasse o ruído contínuo da rota dos aviões e dos caminhõezinhos descarregando na padaria; ainda essa agora? sucumbirei com a janela fechada por medo das bestas-feras? nem mais o prazer dos ventos, balançando as cortinas e vindo me visitar?

como me senti infeliz, por um momento tão insignificante, por segundos que não valem nada e vão ficar na memória uma vida inteira...

reconheço: tenho estado exausta. somente isso explica o fato de tão grande importância dada a tão minúsculo e desimportante significado.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Primeiro escrevi para não esquecer,
mas pus na gaveta, de nada adiantou.

Depois rasguei para não lembrar,
mas cada vírgula se manteve viva, fraudando minhas intenções.

Então decoro palavras e declamo para mim mesma versos aos ventos.

Oportunamente escolho as dunas

Cenário movediço

onde cada palavra nasce e morre
ao mesmo tempo

Assim também eu: nasço e morro sem nenhum alento. 

tenho virado páginas

tenho virado páginas.

o tempo passa correndo.

certeza única: nada é definitivo.

meus planos têm sido constantemente adulterados.

fui arrebatada por um vendaval de anarquia fora de época.

Fui jovem

e agora sou velha como nossos pais,

aqueles, "cabelo ao vento, gente jovem reunida,

e na parede da memória  o quadro que dói mais".


O tempo me trapasseou, me ultrapassou, me alçou a um lugar inimaginável.

O tempo me passou.

Onde fui parar eu, dentro do tempo de mim?