quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Rumo a 2011

Apenas por um curto período
alguém saiu de férias
                             e deixou um bilhete
 comum:

"Vou ali e volto já..."

Obrigada a todos que me "leram" nesse curto período! Obrigada pela energia, pelas sugestões, pelos comentários... obrigada por serem matéria-prima destas minhas palavras-primas. Estarei em contato com velhos amigos, saborosas lembranças e lugares que amo na minha cidade. Vou colher material de pesquisa...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Os avós de Benedita

Benedita estava chorando no parapeito da janela. Aquela mesma, terceiro andar, de fundos. Podia chorar porque sabia que ninguém a observaria. Tinha certeza disso.

Olhava árvores cinquentenárias que não lhe pertenciam. Faziam parte de uma cidade que não era a dela. E apenas um beija-flor, uma andorinha, um sabiá e um pardal ou outro lhe faziam companhia. Havia chovido, mas estava calor, as aves revoavam ao seu redor, e ela estranhava o fato de que em pleno século 21 ainda havia um jardim de fundos, com uma goiabeira remanescente, habitada por aves tão leves, tão livres. Benedita e esses pássaros - que ainda sabia reconhecer - estavam juntos se olhando. Eles cantavam e ela chorava, sentindo solidão.

Toda vez que isso acontecia, velhas lembranças lhe vinham à cabeça e faziam com que ela se sentisse ainda pior, massacrada pela angústia de se achar tão egoísta. É que nessas horas de solidão ela gostava de ir ao encontro de seus avós. Para sentir amor. Só que também sentia muito desconforto em pensar que eles deveriam sair de lá de onde estivessem para vir em seu socorro.

Ela achava egoísmo de sua parte. Muito egoísmo. Mas era o seu único escudo protetor. É assim que sentia amor. A certeza do amor. Nessas horas, não pensava em seus pais, que estavam tão ocupados, na saúde e na doença juntos. Não pensava em seus filhos: um ainda criança e precisando muito dela, outro ainda adolescente e, embora bradar que não, também precisando muito dela. Não pensava em seu companheiro, o qual já a abandonara faz tempo! Esse, decididamente não precisava mais dela. Mas não, nessas horas, Benedita pensava em seus avós mortos, que a amavam.

Seus avós retornavam de suas memórias e a acolhiam, no seu carinho, no seu modo de ser, cada um a seu jeito. Então, ela podia voltar a ser criança, querida, acolhida, escolhida, protegida, especial. Ela se sentia abraçada. Voltava a ser um projeto de esperança, um projeto de vida com a certeza de que tudo iria dar certo e de que as coisas iriam fluir.

Pelos olhos dos seus avós mortos, que a amaram muito, ela voltava a se sentir bendita, abençoada, voltava a se sentir menina e com esperanças no futuro. Benedita voltava a seguir um caminho e a acreditar nele.

Como queria abraçar de novo os seus avós... 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Apenas alguém comum fritando bifes

Não sou ninguém e isso me possibilita escrever sobre qualquer coisa.
Ou melhor (para que nem minha mãe e nem meu psiquiatra me liguem preocupados) sou apenas alguém comum. Por isso, livre. Ou querendo ser livre. Livre de preconceitos, livre das amarras da mente, livre das análises comprometidas e complicadas, livre das teses sisudas.

Mas no fim das contas, no frigir dos ovos, a vida sobre a qual quero escrever deveria ser como bifes fritando numa frigideira. Explico: todos de um lado. Espera. Vira. Espera. Vira. Todos juntos. Chances iguais. Sem muita mexeção. Quando o do meio vai ficando muito torrado, troca de lugar com o da lateral. Ou vice-versa. Chances iguais. Todos ficam prontos ao mesmo tempo. Igualmente apetitosos. Todos saem vencedores. Eu, pelo menos, sou honesta quando frito bifes. Sou honesta comigo mesma nas chances que quero me dar. Chances iguais.

Por analisar empiricamente durante muitos anos e por ser honesta comigo mesma na questão das chances iguais, declaro que escrever é melhor que fritar bifes. Embora muitas vezes o sabor dos bifes seja melhor. Algumas palavras são sempre amargas e indigestas. 


Minha privada vida pública

Já dizia o Barão de Itararé:
"A minha vida pública é uma continuação da privada"

Ironicamente, apesar de me expressar muito, gosto de me expor pouco.
Apesar de fazer parte das redes sociais, não frequento as rodas. Eu me explico: sou une lectrice, ou melhor, une voyer desse adorável/odiável espaço público onde as pessoas se expõem sem o menor pudor, sem a menor cerimônia. Assim, vamos sendo convidados, ora por um, ora por outro, a tomar um café, a ir a uma exposição, a ir dormir, a acordar, a ir trabalhar, a saber suas notas, seus trabalhos, seus prêmios, seus clientes, a ver um show, a assistir a um jogo, a viajar de férias...

Ainda não decidi dentro de mim (nem sei se o farei) se isso é bom ou ruim ou mais ou menos. Gosto de me sentir no parapeito da janela virtual, de ficar sabendo das coisas, das pessoas, do que ocorre ao meu redor - já que me situo tão longe. Eu me sinto a velha tia, tomando conta de tudo: quem vai, quem foi, quem vem.
Mas como eu já disse, sou apenas uma leitora desses acontecimentos. Não me exponho. Mas saibam que eu sei. Sei se foi café ou chocolate quente. Sei se o banho foi antes ou depois de postar a mensagem. Sei se o trânsito foi do cão. Mas a minha vida eu não conto.

Mas não conto não é por descaso, desprezo ou por me sentir apartada, não me entendam mal. Nem é por segredo algum. Como já dizia o Barão, é simplesmente porque minha vida pública é uma continuação da privada. E é com isso que eu tenho de lidar. Às vezes, o produto de minha existência diária vai ladeira abaixo. Às vezes, fica boiando nos meus pensamentos, me incomodando, me fazendo ver que preciso tomar uma atitude. Pessoal e intransferível. Todo santo dia. E isso cansa. Como agora.

Estou me sentindo muito cansada. Não sei bem do quê. Acho que estou com natalite aguda. É comparável com uma daquelas sensações de fim de ano, junto com um calor desértico, de estafa, esgotamento, em que você tem de passar para todos os outros que está zen, num clima natalino, feliz da vida, fazendo compras, onde a suprema felicidade é ter dificuldade para encontrar uma vaga nos estacionamentos dos shoppinhgs, ou carregar sacolas enormes do Armazém Fernando na rua 25 de março, mas feliz.

Pois bem,
Eu não dirijo. Portanto nunca tenho dificuldade nos estacionamentos.
Eu não moro em SP. Portanto, 25 de março só na tv.
Eu não vou a shoppings. Portanto não tenho problemas com compras.
Eu não comemoro natal. Portanto não estou num clima natalino.

Mas isso cansa. Qual é o melhor presente para homens, mulheres, adolescentes e crianças? Qual será o cardápio da ceia de natal? Qual o melhor centro de mesa? Qual a árvore mais bonita? Você já fez sua decoração? Que guirlanda irá colocar na porta? quantos castiçais para uma mesa de seis? Já tirou o nome do seu amigo oculto? Já fez suas compras? Já? Já? Já? Comprou? Comprou? Comprou?

Todos os anos é assim. Sempre assim. Eu é que ainda não consegui contornar. Eu me sinto bombardeada diariamente pelos jornais, pela tv, pelas conversas nas ruas. Eu quero pensar em outros assuntos, coisas mais leves ou mesmo mais graves, porém coisas simples, rotineiras, com o sabor da estação do verão. Eu quero pensar no recomeço, nas minhas tentativas frustradas do ano que se acaba e em como transformá-las em possibilidades para o próximo ano. Nas tentativas certeiras que quero repetir.

Eu quero pensar em dados concretos. Na vida concreta que se reinicia a cada dia.
Eu quero pensar numa coisa que tenha começo, meio e fim. Nessa ordem. Na minha mão.
Eu quero criar o meu dia. E a minha própria vida comezinha.
E como é tudo tão novo, tão incerto, tão impalpável, tão cheio de hipóteses, incertezas e dúvidas, eu não exponho. What's on your mind? Eu não sei. Eu não sei.

Lembrei da Rita Lee e imaginei ela cantando:
"me libertei daquela vida comezinha que eu levava estando junto a você..."

Ninguém que eu conheça na face da terra ou da janela virtual leva uma vida comezinha. Mas eu levo! Eu juro! E jurar em falso ou é mentira ou pecado. E eu não peco. Embora minta às vezes.

Não me venham com estampa de cobra!

Não gosto de estampa de animal, seja ele fera ou bichinho: onça, zebra, tigre, leopardo, cobra, pavão, ursinho, coelhinho, carneirinho, cachorrinho, gatinho. Não sei porque a moda insiste em nos rotular como felinas elegantes, fêmeas animalescas, bestas-feras ladinas ou infantilizadas. A quem se quer enganar? Não vivemos mais nos tempos das cavernas, não nos cobrimos com peles, não precisamos nos aquecer, não vamos nos tornar poderosas por isso. Nem meigas, doces, frágeis.

De todas essas estampas, a que mais me incomoda é a de cobra. Quem se vestiria para se sentir rastejante, sinuosa, sibilante? Quem tem orgulho em ostentar uma segunda pele - que não é a sua - que traz imbuída as maldades traiçoeiras do mundo?

Você veste a cobra e se torna uma. À espreita, se esgueirando, va  ga   ro   sa, pronta para dar o bote, para ferir, para assustar, para matar. E depois se despe. Se desnuda dessa própria pele - esperando uma próxima igualzinha - sem deixar de lado ser como é.

Odeio pele de cobra, estampa de cobra, chocalho de cobra e piadinha de cobra.
Odeio traições.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A história de Patscot

Patscot nasceu num aquário. Pequenininha.
Ela é um polvo. E já nasceu com aqueles olhos negros.
Patscot poderia ser assim descrita: cérebro, olhos, braços, coração.
Mas apesar do aquário, a vida toda Patscot quis ousar, quis ir muito além dos seus limites.

Patscot fez alongamento. Esticou seus braços e foi se esgueirando para fora daquela redoma de vidro que havia lhe protegido a vida toda. E ganhou o mar. Um oceano de oportunidades.
Patscot, então, achou por bem nadar para todas as direções, conhecer cada recanto daquilo que havia sonhado em conquistar, mapear todos os seus possíveis e impossíveis caminhos, exercitar ao máximo a sua inventividade, enfim, colocar toda a força de sua engrenagem para funcionar.
Desde então, Patscot se reinventou.

Cada braço segura um destino e se guia por um caminho.
Patscot cria, inventa, comanda, delega, pragueja, negocia, sustenta suas crias, recomeça a caminhada, ama, odeia e volta a amar de novo.
Patscot anda, dirige, corre.
Come, bebe, dorme.
Ama,  trabalha, sonha.
Mas quase não descansa!
Patscot acorda cedo e dorme tarde. Muito de vez em quando faz o oposto, só pra contrariar.
Patscot fala muito. Sabe ouvir também, mas é muito melhor no falar.
Patscot hipinotiza com aqueles olhos negros, consegue qualquer coisa da gente.
Patscot nada pra cima e pra baixo, cansada e feliz, querendo ainda ter tempo para outros sentimentos. Patscot não sabe, mas já é nobre. Desde sempre. É toda coração. É dedicada. É complicada. Mas é simples e gentil.
No fim do dia, Patscot se refresca com as algas, os sais e as espumas do mar. Vai pra praia e fica olhando, procurando nos grãos de areia...  Patscot vira sereia e pode dormir tranquila. 

domingo, 28 de novembro de 2010

A teoria do fio

Para Patrícia Del Carlo, fio infinito

Vou lançar aqui a teoria do fio.
E o que vale é o que vale.

Nós estamos ligados.
Somos um fio tênue e invisível que se amarra.
Um ao outro.
Dia a dia.
Numa existência infinita.
Ocorre que às vezes acostumamos tanto com o fio que já nem ligamos muito pra ele.
Ficamos tão confiantes com o tal, que damos corda, vamos longe, como pipas alegres ou fugidias, voando por céus longínquos e buscando novas experiências.
Mas o fato é que somos um mesmo fio.
Um fio de amor com uma ponta perto, outra longe.
Uma ponta amarga, outra doce.
Uma ponta alegre, outra triste.
Uma ponta forte, outra frágil.
Vamos voando pelo céu da nossa existência, experimentando e vivenciando seus diversos estágios.
Ora tensionados, ora livres. Com propósito ou sem. Mas no fundo (que bom) esse fio nos faz ver também que somos pipas coloridas, leves, lindas, corajosas e com uma rabiola incrível... que desenha no azul do céu o mais lindo e infinito desenho: o amor.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Aprendizagens com a chuva forte

A terra escorre.
Se transmuta: fica líquida e se dissolve, foge, vai embora.

A água evapora.
Sobe pelo ar. Suas moléculas se modificam e fogem, vão embora.

A mata se contorce.
Árvores e galhos envergam, se retorcem. As folhas fogem, vão embora.

Instala-se o caos.
Tudo se desmancha, se deforma.
Tudo se modifica, se altera.

Mas depois, com a estiagem, as coisas voltam

e se firmam
e se endurecem
e se fortalecem


A caminhada é feita com um passo após o outro.
Sempre.

Tudo muda e muda muito.
Tudo volta e não volta igual.
Volta mais forte - compactado.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A toalha de banquete

(Para o mais recente almoço em família: Leninha, Marcão, Ritinha, Reviane, Danilo e eu - 13/11/10)

Na sala de jantar tenho uma mesa de madeira rústica com dois metros e meio de comprimento e seis cadeiras. A depender da ocasião, banquinhos são improvisados e sempre cabemos todos na hora da refeição. Nessas ocasiões especiais, gosto de usar uma linda toalha branca, própria para banquetes.

Quando meus amigos chegam em casa, sempre há uns petiscos, uns aperitivos, uns brindes antes da hora do almoço. Travessinhas e cumbuquinhas são dispostas na mesa nua, contra o tampo rústico. Copos vão se enchendo, esvaziando e derramando durante os preparativos.

O fogão em pleno funcionamento, as conversas, as risadas, as novidades e chega a hora de pôr a mesa. Alguém sempre se oferece para ajudar. Então, é a vez da toalha branca aparecer.

A velha toalha adamascada tem manchas de todas as cores e formatos, mas é ela quem melhor "veste" a mesa. Não são simples manchas, são marcas das taças de vinho e dos copos de cerveja e de refrigerante, de tantos brindes nas ocasiões especiais. São marcas dos caldos suculentos e gordurosos ou de tantos lombos de porco, costelinhas, picanhas, enfim, carnes temperadas de véspera e tão macias que quando assadas ficam a ponto de desfiar e  despencar no ar, na hora de servir o prato. Marcas de um arroz tão soltinho que acaba voando da travessa. Marcas doces das sobremesas sempre presentes: compotas, doce de leite, bolos de chocolate, pudins com calda caramelada. Marcas de feijoada. Marcas de laranja, sempre formando uma montanha de cascas. Marcas de macarrão com o molho da "mamma" e frango assado de padaria. Marcas de gotas de vela derretida. Marcas de uso. Marcas de vida.

Gosto de ver minha toalha branquinha ganhando uma nova mancha. Gosto de falar: Não faz mal! Não tem problema! A toalha é só lavar, mas este momento é único!

Gosto de receber amigos e gosto de comemorar em família. Gosto da casa e da mesa cheia. Gosto da aflição de fazer tudo a tempo para agradar. Gosto de servir.

Mas gosto muito mais ainda de me sentir gostada, amada, realizada, de ver que o almoço foi um sucesso porque nele não faltaram os ingredientes principais: amor, amizade, alegria do reencontro, vontade de nos revermos, compromissos de fidelidade, não aquela... mas a outra, a simples, a fidelidade do olho no olho e sentir que é bom estarmos aqui e agora.

Uma casa bonita, uma mesa farta, uma toalha branquinha? Sim, são todos elementos importantes. Mas nada se compara ao valor dos amigos. Uma mesa cheia de amigos é o melhor presente que alguém pode ter. Por isso minha casa é sempre aberta, minha mesa é sempre cheia, assim como o meu coração.


Escovando os dentes na janela

Ninguém sabia que Jurandir escovava os dentes na janela.
Embora cultivasse esse costume desde criança, ninguém sabia ou ao menos nunca havia comentado esse hábito curioso.

Quando criança, Jurandir morava num apartamento de frente para o mar, no primeiro andar. Ela fazia desse momento íntimo, desse gesto simples, uma pausa para reflexão. Embora fosse tão pequeno, gostava de aproveitar o tempo - pelo menos aqueles dois ou três minutinhos, no máximo - sentindo o vento no rosto, o cheiro de mar, ouvindo o barulho das ondas, sentindo o calor do sol, a brisa cortante cheia de sal, enquanto escovava os dentes e pensava na vida. Pensava em coisas simples de criança, em como seria o seu dia na escola, ou de que iria brincar na volta, ou verificava consigo mesmo se já havia arrumado os livros para a aula. Era como se Jurandir organizasse seus pensamentos. Era uma agenda mental passada a limpo. Agenda de criança, com todas as suas diversões e brincadeiras.

Hoje, adulto, Jurandir mora numa cidade grande, terceiro andar, de fundos. E continua escovando os dentes na janela. Ele gosta de pensar que seu apartamento, mesmo sendo de fundos, tem uma visão privilegiada em relação aos apartamentes de frente. Enquanto para estes a rua é barulhenta e infernal, colada com os outros prédios da frente e invadida por um ininterrupto barulho de carros e ônibus, para ele, nos fundos, a rua é mais calma, e o que se vê são os quintais das outras casas vizinhas e prédios, com seus cachorros cochilando ao sol do meio-dia, com jardinzinhos capengas e abandonados, que as pessoas acreditam não serem notados, com roupas no varal, com cacarecos jogados e amontoados nos cantos. Vê-se partes, pedaços de projetos e sonhos largados ou mesmo belos e viçosos jardins bem cuidados, rosas floridas demonstrando zelo e capricho, espaços projetados de famílias bem-sucedidas.

Da janela de fundos de Jurandir, vê-se também a avenida principal do bairro, que corta de fora a fora seu ângulo de visão. Vê-se as árvores plantadas há mais de quarenta anos, pássaros que teimam em bicar as goiabas remanescentes nos quintais. Vê-se pessoas passeando com seus cachorros. Vê-se a vida do bairro fluindo num cotidiano ensolarado da hora do almoço.

Todo dia Jurandir põe a pasta na escova e se encaminha para a janela. Abre-a completamente. Ele sabe que ninguém estará olhando pra ele. Mesmo que outras pessoas possam vê-lo, não desviarão seu olhar e sua atenção para uma triste figura de pé, escovando os dentes numa janela, durante uns dois ou três minutos, no máximo.

Enquanto a escova passeia por entre molares, pré-molares, laterais, incisivos e centrais, inferiores e superiores, faces internas e externas, Jurandir se deixa fugir. Seus olhos percorrem os quintais, garagens, árvores, carros e transeuntes. Sua mente vagueia num ínfimo tempo de constatação e reflexão.

A escova massageia seus dentes e pensamentos. Quando vai escovar os dentes após o almoço, pela sua janela vê que há aqueles dois sentados no barzinho da esquina. Há a mulher que lava panelas naqueles degraus perto da cozinha da casa dos fundos. Há a dona da casa embaixo de sua janela, aquela que sempre faz festas, varrendo o quintal. Há o homem que fala alto e grita, será que tem problemas de cabeça ou bebeu demais? Há crianças indo e voltando para a escola.

Jurandir termina. Minutos, apenas. Uma agenda mental passada a limpo.

Um dia, enquanto Jurandir estava no seu ritual diário de higiene bucal e mental, um caminhão da prefeitura parou na avenida para realizar uma operação de poda de árvores, pois os galhos estavam por demais atrapalhando os fios. Um homem subiu numa grua e invisivelmente iniciou o seu trabalho.

Jurandir ficou ouvindo aquele barulho medonho da serra elétrica e observando o homem fazendo o seu trabalho compenetrado. Ambos, Jurandir e o homem. Terminaram. Ambos, Jurandir e o homem.

Então, o homem acenou. Fez um gesto esquisito, uma espécie de continência e depois sinalizou para seus companheiros que havia terminado e era hora de descer.

Engraçado, até aquele dia nunca souberam que Jurandir escovava os dentes na janela, apesar de ser um hábito que cultivava desde criança.

Aviso aos navegantes

Ter medo é muito simples
Ter medo é muito fácil
Ter medo é muito raso

A gente se acostuma com o ter medo
ter medo e não fazer nada
ter medo e morrer na praia
ter medo e ficar paralisado
 Ficar parado

Tive medo por muitos anos. Meses. Dias. Horas e minutos.
Meu único medo agora é continuar a ter medo.

O medo de dirigir é o medo de ir, enfrentar o novo caminho, tentar uma nova saída
O medo da tecnologia é o medo do controle sobre si e sobre o novo, mutante a toda hora
O medo de se expor é o medo de ter direito a cobrar, a querer o bom e com razão

Pois bem, até agora andei a pé, escrevi em máquinas antigas e fiquei calada
Mas comprei um par de tênis, um netbook e um megafone.

 Tudo tecnológico e moderno
Equipamentos portáteis, que eu possa carregar comigo nesses novos caminhos que estou trilhando

Ok, eu estou bem
Ok, eu corro
Ok, eu falo

Ainda escuto muito
Ainda ando a pé
Ainda gosto de maquinárias antigas
Só que agora é por opção

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A história de Dolores - parte 1

Quando Dolores voltou de Lisboa, trouxe consigo sua máquina de escrever portátil. Nela havia um adesivo colado escrito frágil. Há que se lembrar que naquela época ainda não existia internet, tampouco notebook.

Durante as onze horas de voo entre os dois continentes e as duas conexões, a máquina ficou no colo, lembrando-a das coisas que tivera de deixar para trás, pois já estava com treze quilos de bagagem a mais - só de livros. Dentre esses pertences abandonados ao destino, estava a coleção das cartas da mãe.

No avião pensou que a única pessoa que a entenderia seria o Henfil, embora ele mesmo já houvesse morrido. Quando Dolores era pequena, não sabia quem era o Henfil e muito menos o seu irmão. Hoje em dia, alguém sabe? alguém ainda conhece as cartas da mãe? Pois bem, para Dolores, era esse um tesouro imenso que precisou ser sacrificado.

Quando de sua permanência no velho mundo, foram as cartas que lhe trouxeram refúgio, ternura, notícias, palavras encorajadoras, conhecimento daquilo que estava acontecendo na sua ausência. As cartas personificavam a mãe. As cartas eram a mãe. Por isso é que custou-lhe tanto ter de abandonar a mãe, no meio da rua, jogada ao relento, no bairro Lumiar.

Mas não era só pelas cartas que Dolores se ressentia. Tivera de deixar toda uma vida. E é por isso que olhava fixamente para o adesivo escrito frágil da máquina de escrever pesando sobre o seu colo nas onze horas de voo.

Frágil, frágil, frágil. O que seria dali para frente, Dolores resolveu conferir quando, em terra, usou a ficha telefônica que tinha guardado esse tempo todo como se fosse um talismã. Uma ficha com a inscrição TELERJ e que lhe permitia falar por três minutos numa ligação local. Há que se lembrar, também, que naquela época, no Brasil, os telefones públicos funcionavam assim, com fichas, diferentemente das ligações da Europa que eram feitas em cabines e com a moeda local. 


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Comprei um par de tênis

Hoje vou começar a correr. Digo, a voar.
A vida toda sempre esperei muito. Muito de mim, muito dos outros.
Sempre fui esperançosa. E continuo.
Mas acontece que esperar cansa.
Então, decidi voar.
Correr.
Ir atrás.
Só que não foi assim fácil, uma ideia pá, pum. Não foi uma decisão certeira, direta, ágil. Ela veio se instalando devagar, veio se esgueirando sorrateiramente para o meu inconsciente até que um dia eu sonhei.
Sonhei que estava numa praia deserta correndo muito, como uma atleta. A areia era dourada e a praia era uma extensa faixa contínua e linear, que ia looooooooge.
A cada pisada na areia, conchas enormes surgiam marcando o meu caminho. Parecia que eram presentes. Porém, mais que presentes do mar, elas eram presença marcante no meu trajeto. A prova de que eu havia merecido cada passada daquelas.
Não acordei cansada, suada ou com sede. Ao contrário, a sensação que tive foi ótima. Revigorante. A vontade que tive foi de levantar e começar a correr naquela hora mesmo. Mas, e a praia? e a areia dourada? De novo, apenas guardei o sonho na gaveta.
Até que essa imagem começou a ser mais recorrente a cada dia, insistente nos momentos mais variados que apenas alguém comum pode ter: tomando banho, vendo televisão, almoçando, estudando, pendurando roupa no varal, lendo jornal, bebendo café, até mesmo caminhando. Basta!
O quê - e x a t a m e n t e - estava faltando para começar?
Será que quando a gente corre a gente para de esperar?
Se quem espera sempre alcança, alcança mais rápido quem chega correndo?
Não sei. Mas tenho para mim que as dúvidas da caminhada são muito mais angustiantes porque demoram mais. São muito mais lentas. E eu tenho pressa.
Não é possível que alguém seja fadado a esperar parado. Quero esperar correndo.
Decidi correr pra ver.
Comprei um par de tênis.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pegada flower power

A vida tem que ter sabor. Bom.
Levamos uma vida muito regrada, muito compromissada, muito sóbria.
Acordamos cheios de compromissos e vamos dormir já comprometidos com o rendimento do amanhã.
Não sobra prazer, não sobra diversão. Aliás, falta.
A vida assim é muito chata.
Proponho uma pegada flower power.
Quero a alegria da cor do sol, o sabor dos ventos, a sensação do caminhar livre, descalço.
Quero ouvir o barulhinho das águas, das aves, das ondas.
Quero os cheiros todos a que tenho direito:
maresia, terra molhada, fogão a lenha, estrume de vaca, flores do campo, café quentinho, cachorro molhado, flor de laranjeira, chuva de verão, bolo saindo do forno, cheiro de cavalo galopante, cheiro de roça, cheiro de montanha, cheiro de mar.
Flower Power são meus olhos, são meus ouvidos, são minhas mãos e meus pés.
Flower Power é o meu coração. Sou eu inteira nos anos setenta, braços abertos, peito aberto, cabelos abertos ao vento, que passa por mim e não me derruba; que passa por mim e me firma ainda mais.
Contagiar e ser contagiado por uma mente aberta...

Eu sou flower power. E você?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sou cozinheira

Mas alguns pratos eu nunca irei fazer. Um deles é feijoada. Amo. Adoro. Com todos os seus rituais já escritos, descritos, cantados e saboreados. Mas nunca na minha vida  irei fazer uma feijoada. Claro que sempre que me convidarem, irei, sim, comer, saborear uma belíssima feijoada. (já estou até com água na boca!). Mas o problema reside no fazer desse digníssimo prato nacional, que envolve muito amor, muitas histórias de amor. Não que eu não tenha amor, também não é isso. Mas acho que a pessoa nasce para tal. Ou não. O tal, no caso, é saber fazer. É a responsabilidade do fazer.

Na minha infância, era a Tia Julieta quem fazia uma farta feijoada para a família toda. No apê da praia. Calor de verão de 40 graus. E o caldo borbulhando, a vizinhança sentindo o cheirinho, a criançada voltando toda cheia de areia e indo tomar banho pelo sistema do rodízio avisado pela toalha na janela... bons tempos... tive nessa época uma toalha vermelha de flores brancas. Era a mais chamativa de todas. Quando eu hasteava minha "bandeira" ao vento, o próximo chegava correndo para o banho e aquele que já tinha acabado ia ajudar na cozinha. Bons tempos!

Depois, minha mãe passou a fazer a feijoada da família. Mais discreta, com menos estardalhaço. Muita laranja picada. Muita couve picada. Claro que também era muito saborosa, mas sem as delícias das confusões infantis, da família toda reunida e sem a presença de minha avó. Digamos que uma feijoada sem fado era para nós muito triste.

No meu aniversário de 28 anos, quem fez a feijoada foi Omar. Minha barriga estava com quase nove meses e o local foi o apartamento da rua Nilo. No paraíso. Engraçado, sempre quis escrever um conto que começasse assim: "Uma vez, vivi no paraíso"... Essa feijoada já foi bem diferente. Bem adulta. Com novas responsabilidades chegando. Diria que foi quase uma feijoada contida, apesar da muita cachaça e da muita cerveja. Foi a primeira dessa nova era.

Desde então, Omar vem assumindo o papel de Mestre Feijoeiro. Já foram tantas, que perdi as contas. Vinte anos de feijoadas afora. Um ritual que se inicia na véspera, com os planos, as compras, e os pertences escolhidos um a um, na Feira dos Produtores, diretamente de comerciantes amigos, que nos oferecem a melhor costelinha, o melhor lombinho defumado, orelhinhas, pezinhos e rabinhos pra ninguém botar defeito.

Então, no dia seguinte, os trabalhos começam cedo. E lá vai ele, quase como um general, comandando com seu avental aquelas panelas, as quatro pequenas bocas do fogão, e nós, seus assistentes. Toda vez ele diz que vai comprar umas panelas maiores. E faz planos para o futuro. Num instante a manhã se passa, num rodízio sem fim de caipirinhas acompanhadas de uns petiscos e de um tanto de conversa jogada fora.

O cheirinho arrebata a casa toda e o aroma do feijão se mistura ao amor. Tem-se a impressão de que serviremos um batalhão. Mas o quórum, agora, já é menor. Quando a feijoada fica pronta, o pequeno grupo se prepara para o ataque e se ajeita para o mais puro deleite. E é aí, nesse momento suspenso no ar,  uma hora mágica, talvez, que o tempo do relógio para e o universo se divide em dois grupos: os que nasceram pra fazer uma feijoada e os outros.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

De como se passou um ano inteirinho, que me consumiu em um árduo projeto, que me consumiu em uma árdua espera e me fez sentir órfã até aparecer uma nova opção. Ou de como perseguir um objetivo

Fui para
Porto
Alegre
Voltei
Gerais
E agora?
Sigo a
Vitória

Sujeito indefinido

Eu me defino como uma pessoa
ácida
cheia de lágrimas
e poucas palavras - apesar do humor

Eu me defino como uma pessoa
em estado líquido
forma sólida
e pensamentos gasosos

Eu me defino como uma pessoa
marcada
ao invés de marcante
acuada
em vez de atuante
dominada
em vez de dominante

Eu me defino como uma pessoa
extremada
entre pares dançantes:

calada - falante
parada - reinante
fadada - errante
pasmada - gigante
desamada - inconstante

Eu me defino como uma pessoa só
 - dissonante
Eu me defino como o óbvio ululante

sábado, 23 de outubro de 2010

Carga

Ontem na rua, vi um caminhão que estava escrito assim:

Carga sem valor
Cenário de teatro

Tive vontade de estampar no peito:

Carga desvalorizada
Atriz do cotidiano

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A menina

Um raio de sol bateu na trancinha do cabelo daquela menina que aparecia ali, pela primeira vez, naquelas escadinhas, onde os carros e as peruas escolares paravam para deixar os alunos na escola.

Vocês se lembram daquelas escadinhas na Via Anchieta? Pois é, foi lá.

Eu vi. Ninguém me contou. Nem eram sete horas da manhã.
No exato momento em que a porta metálica da perua se abriu e os alunos começaram a descer, um raio de sol apontou para aquele cabelo loiro, com uma trancinha lateral.

O que queria aquilo dizer? Qual o significado? Quais as implicações futuras? O que aconteceria dali para a  frente?

Ela calmamente subiu as escadinhas e se encaminhou junto com os outros meninos, aguardando o primeiro sinal.

Eu não sei porque fiquei ali parada, olhando essa cena tão corriqueira. Quando ouvi o sinal, subi correndo para a minha sala.

A aula acabou e vários anos se passaram. Quantos meninos e meninas subiram aquelas escadinhas? Eu mesma, nunca mais voltei ao colégio. O que foi feito daquela menina? Vai ver que ela estudou, casou e mudou. Nem tem mais trancinha. Nem é mais loira.

Meu avô descascava laranjas

Na cozinha. Após o jantar. Era uma mesa oval, de fórmica e azul. Naquela época, as cozinhas eram todas azuis, vermelhas ou amarelas. Tudo combinava: a geladeira, o fogão, os armários, a mesa e as cadeiras. Os paninhos de prato e as capinhas também: tinha capinha pra tudo: para o botijão de gás, para o liquidificador, para o bule de café. E tudo combinava.
A cozinha do meu avô era azul. Com azulejos brancos – até metade da parede – e uma grande mesa oval, onde cabíamos todos: minha avó, meu avô, minha prima, minha irmã, eu e sempre tinha espaço para mais alguém. Sempre aparecia mais alguém: minha mãe, minhas tias, meus primos, alguns vizinhos, alguns inquilinos, algum pedreiro ou funcionário, o tio Manuel...
Mas à noite, tínhamos que comer em silêncio, calados. Nessa hora meu avô era muito bravo. O seu tom era muito sério – respeitoso – mas nós não aguentávamos. E ríamos. Ríamos muito da austeridade do momento. Meu avô dava muitas broncas no jantar e usava sua expressão favorita: “caluda!”. A gente, então, se entreolhava e assentia.  Selávamos o acordo e o  jantar poderia, enfim, seguir o seu ritmo. Todas aquelas delícias feitas por minha avó seriam finalmente saboreadas e repartidas.
Depois de tantos anos sem os jantares na casa de meu avô, o que mais fortemente ficou na minha memória é que no final ele nos descascava laranjas. Muitas. Uma a uma. Para todos nós. Para quem quisesse repetir. Sempre ficava sobre a mesa aquela montanha de cascas e bagaços chupados. Sinal de que o jantar havia transcorrido na mais perfeita paz.
O aroma cítrico da casca da laranja tornou mais doce a acidez do meu avô.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sonhei que

Alguém vasculhou minhas gavetas
Devassou as minhas senhas
Revirou os meus papéis

Leu minhas mensagens
Conferiu meus gastos
Contou meus passos
Ficou bravo
Entendeu tudo errado

Ficou noites insone
Desconfiou do telefone

Olhou os meus pertences
Murmurou bobagens
            Amassou os meus escritos
 Rompeu comigo

 
De madrugada, quando escutei meu próprio barulho,
após ter caído da cama,
suada,
descabelada
 e assustada,
pensei:
que bom! acordei!

Procurei os meus chinelos e levantei para beber água.

Na porta da geladeira, encontrei em negrito:

"bastava me falar
bastava me perguntar
bastava me conhecer
bastava querer me entender
bastava"

Eu minto

Eu ainda uso ralador de cenouras
Espremedor de laranjas
Tábua de bater carne

Meu café é no saco
Meu arroz é pilado
Meu feijão é catado

Quero descobrir o sabor real
 - o sabor do sal -
Quero sentir o simples

Quero me sentir forte
Mas anacronismo é o que eu sinto

Eu acordo com as galinhas
Eu durmo com a Ave-Maria
Eu olho para o tempo
Eu me volto para os dias

Quero me sentir forte
Mas anacronismo é o que eu sinto

E então, quanto mais o vento se alevanta, rodopia no meu quintal, embaralha minhas folhas e meus diários pensamentos,
eu olho para o Norte

Pego a vassoura
- de piaçaba - e varro

varro varro varro

e o vento me traz tudo de volta

tudo tudo tudo

Quero me sentir forte
 - seguir o meu norte -

Um dia ainda deixo de ser anacrônica

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fiz as pazes com Frejat

Não serei mais rancorosa
a ponto de te culpar
Não serei mais vingativa
pra querer te cobrar
Muitos anos se passaram
e o clichê  aqui está: o que passou passou
éramos tão jovens, puristas impuros e impróprios
queríamos o absurdo...

Hoje, escuto tua voz quente,
tuas baladas (baladas!) românticas
tuas palavras ecoam em mim
e fica o principal
fica tua verdade em rimar
segredo com prazer e medo
amor com degredo

Essa voz quente, rouca, envelhecida
combina, casa perfeitamente,
irremediavelmente,
com meus sonhos mais loucos
de vento nos meus cabelos
a estrada ali na frente
nós dois e o resto do mundo
mas então eu lembro que ainda não saí
então, eu vou estar "numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar"
e quando você chegar vou olhar bem fundo nos teus olhos e não vou dizer nada
quero te ver conhecendo os meus segredos...

Acordei meio Ana Cristina

Volta de viagem
e eu perdida
arrumar as roupas
arrumar a vida

Volta de viagem
e eu partida
arrumar motivos
de mais uma briga

Volta de viagem
e eu sofrida
arrumar desculpas
e encarar a vida

Volta de viagem
e eu mexida
sem ter coragem
para a despedida

Volta de viagem

Partida



Hoje eu acordei meio Ana Cristina.

Acordei assim em 2004. Acordei assim em 2010.
A Ana Cristina a que me referi é A. C. Cesar. Poeta maior e marginal, que se foi tão jovem. Pretensão minha, eu sei. Com seus "Inéditos e Dispersos", muitas vezes eu sonhei palavra por palavra. Li seus poemas mastigando em mim sentimentos tão sinônimos que até hoje, eu acho, ainda os estou digerindo. Até hoje me sinto assim, tantos anos depois de "conhecê-la". Mergulhar no universo de A.C. é o mesmo que fazer uma viagem interminável. É uma volta constante a mim - que não fui, que não sou, que não fiz.
É uma volta, volta, volta.
Um dia eu volto.

sábado, 16 de outubro de 2010

A viagem do Re

Fui ao reencontro.
Buscava o resgate. Um refúgio.
Redefinições.

Remanejei meus compromissos.
Reacendi meus desejos.
Refiz meus planos.

Com projetos redefinidos,
fiz a mala recheada de esperanças.

Cheguei reticente. Saudosa. Calorosa.

O Re se tornou morno, insosso, fraco perante minhas expectativas.
O Re se tornou real. A vida como ela é. Sem retorno, sem ré.

Eu peço desculpas por ter ficado magoada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um olhar sobre parte do Brasil

Sempre viajei muito. Sempre observei muito. Sempre gostei mais de ver-ouvir que falar... Procurei uma identificação em cada um desses meus caminhos. E me vi fazendo parte desse meu povo. Eu me vi mineira, eu me vi baiana: baianeira-brasileira.
As imagens que passavam pelos meus olhos, ficavam gravadas na memória como se fossem uma tela. Aquarela. Como não sei desenhar, escrevo. Como não sei pintar, escrevo. Como não sei fotografar, escrevo. Como não sei cantar, escrevo.  Faço destas palavras a minha exposição.
Numa dessas viagens, entre julho e agosto de 2005, passei dez dias correndo trecho, percorrendo parte do sertão baianeiro. Constatei que entre o norte de Minas e o sertão da Bahia não deveria haver fronteiras. Nem divisas. Pelo menos essa foi a sensação que tive.  
Sou fruto do mesmo povo moreno e humilde que é “antes de tudo um forte” e habita o coração do Brasil. Foi pra terra desse povo, o meu povo, foi pra casa desse homem sertanejo que eu dirigi o meu olhar.
Fixei na memória cada pedaço de chão, cada pé de pau, cada casinha caiada com seus velhos e crianças nas janelas.
Parece que tudo é alaranjado e mágico. Parece uma poeira solar que nos transporta para outra dimensão.
Por meio dos meus olhos,
Viajei meio mundo inteiro
Fui a lugares longínquos
Do imaginário brasileiro
Do sertão eu vi o sol,
Vi a terra virar pó,
Vi cidades minguando,
Vi tanto velho só.

Por meio dos meus olhos,
Vi paisagens seculares
Vi uma beleza errante
Metamorfoseando meus olhares.

É uma beleza triste –
a foto que se tira é uma
Mas a que fica, resiste.


Poema das cores

A luz do sol de fim de tarde
 que bate nas pedras da Serra do Espinhaço
é fantástica.
É um laranja-cítrico
que banha os vales verdes.
É um manto de luz
laranja-terracota.
O azul e o branco pertencem ao céu
– coalhado de nuvens e revoadas de aves.
O verde é suave como um manto,
um fino lençol que se estende ao longo.
O preto pertence ao horizonte rochoso
 – que é quase um prolongamento do monótono asfalto.
Mas a terra é da cor da paixão.
Tem um vermelho intenso,
que invade os olhos.
Fura, penetra, racha o coração.


Os mandacarus são enormes. Gigantes. Maiores que as cruzinhas brancas que vemos ao longo das curvas.  Elas, as cruzes, nos remetem ao fim do começo. Eles, ao começo do fim, pois são, a seu modo, uma fonte de esperança e de renovação.

Quando eu passo pelas casas das estradas,
Não vejo o olhar de quem me vê.
Vejo suas janelinhas tímidas,
Que se abrem para os vastos montes da Serra do Sincorá.
Vejo os pastos
Vejo as plantações
Vejo suas crianças brincando na terra
Mas não vejo seus olhos e seus humildes corações.
A passagem é rápida como um aceno
Mas meu olhar guarda pra sempre aquele sorriso
Que timidamente nem se descortina.


As vergonhas do Brasil  I

Ao lado dos cafés secando nos terreiros
Ao lado de meninos descalços brincando nas ruas
Ao lado das poucas e inexpressivas pracinhas
Há a pobreza, a miséria, a desinformação e o lixo.

Contrastando com palmeiras, mangueiras,
umbuzeiros, jaqueiras centenárias,
 “pets” de todas as marcas
Sacos de todas as cores
Cacos de tudo jogados
Restos mal aproveitados,
Cuspidos como escarros
Dessa escória que só usa e não cuida.

As vergonhas do Brasil II

As estradas deveriam se chamar buraqueiras.
Quando alguém, perdido nas estradas deste nosso vasto território,
Conseguisse achar alguém para se informar,
E  perguntasse qual o caminho, diríamos:

 - Entre na Buraqueira Federal, depois pegue a Buraqueira Estadual, seguindo placa nenhuma.

Com o auxílio dos Orixás, da Bahia de todos os Santos, quem sabe chega!!!

Franzinos meninos

Moreno de short
franzino menino
te lembro empoeirado
descendo da boleia.

Nas mãos o porvir.
Nos olhos o infinito.
Sonhos de um futuro distante,
que nunca, ao certo, 
quem sabe, realizaria.

Pés descalços e peito nu.

Que é desse menino?
Que é dos campinhos de futebol,
das bolinhas de gude,
das caçadas e estilingues?

Onde está tua infância, menino?
teus cachorros, teus passarinhos,
teus companheiros?

Ah! Franzinos são teus sonhos
de menino do Brasil.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Meu carinho vai para W.

Já gastei muitas canetas, cadernos e folhas.

Já escrevi no ar, na areia e na poeira (aos seis anos de idade, quando quis fugir de casa e deixei um "recado" no criado-mudo).

Já escrevi pensando, cantando, orando, mentalizando. Mas nunca me senti tão motivada quanto agora, incentivada por meu amigo W.

Sabe aquelas pessoas que a gente tem pouco contato, que é amigo do seu amigo e que, por acaso, gosta de você? Então, W. é assim. Nosso contato é muito pequeno, mais pela distância e  pela falta de oportunidade que por falta de afinidade, imagino. W. é amigo e companheiro de minha amiga D. Acho que pelo fato de eu ter passado quase dois terços de minha vida compartilhados com D., W. tem um carinho por mim, deve ter, não é possível que meu nome não seja citado naquela casa pelo menos.... bem, deixemos isso de lado, o que importa é a qualidade. Enfim, dessa amizade ficou uma grande saudade! Sempre que vou para sua cidade, eu me empenho em vê-los. Num desses dias, W. me perguntou porque eu não escrevia... ou seja, porque não colocava em prática essas palavras soltas, voláteis. Por quê? Por quê? Por quê?

Eu não soube responder... me senti mole, amorfa. Mas também me senti desafiada. Demorou um mês para eu ensaiar este começo. E aqui estou. No fundo, no fundo, não preciso de pretexto. O que me impulsiona pode estar em qualquer lugar, ao meu lado ou longe, de modo bem simples ou dolorido, bebendo ou não, acompanhada ou só.

Meu carinho vai para W., que me fez querer responder à sua pergunta.

Minha prima é escritora

Não de verdade. Não sempre. Mas por um período pequeno de sua vida, minha prima exerceu o ofício de escritora. Narradora epistolar, mais precisamente.

Várias décadas atrás (eu nem tinha cinco anos) meus pais e eu nos mudamos para uma cidade do interior. Durante doze meses seguidos, semana após semana, minha prima nos escreveu cartas.

Recentemente, minha mãe, ao "destralhar", deparou-se com envelopes esparsos, daqueles, verde-amarelos, cujo remetente ainda constava a antiga Rua Jardim Tropical... rua de terra, na qual o carteiro nem ia. Escrever naquela época dava um trabalhão danado... as pessoas tinham de ir até os Correios levar e buscar suas cartas e encomendas. Pois bem, em vez de "destralhar" aquilo tudo, minha mãe juntou uma a uma essas cartas e colocou-as em ordem. Surpresa: o relato familiar de um ano inteirinho.

Na ocasião, a família toda não passava de umas 15 ou 20 pessoas... imigrantes que somos, justapostos uns aos outros, sempre moramos juntos, vizinhos. E o fato de três de nós se afastarem significou alguma coisa.
Os motivos dessa viagem? Tecido para outra história...

Pois bem, minha prima escreveu. Sua narrativa é clara, límpida, objetiva e direta. Sem nenhuma nem qualquer intenção, esses textos, ora datilografados ora na sua letrinha miúda de adolescente dos anos 70, relatam fatos tão corriqueiros quanto importantes.... para mim...

Minha prima escritora contava as coisas que tinham ficado: como tinha sido seu dia na escola, o que iria comer no almoço, quem havia ficado doente, por quantas horas o telefone havia ficado mudo, qual era a novela da época, qual parente distante havia se mudado, qual a cor do casaco novo, até mesmo expressões que até hoje ela usa, assim tipo: "paciência!", enfim, tudo o que lhe viesse à mente e mais tudo quanto meus avós, tios e primos lhe pedissem para contar. Fatos corriqueiros. Mas dotados, porém, de uma importância visceral.

Minha avó devia ser muito ocupada, pois sempre mandava lembranças e dizia que não tinha tempo. Meu avô era incumbido de levar as cartas e ficava pressionando para que ela acabasse de escrever logo... punha seu VW branco a funcionar e lá ia o BB7012... fazendo fumaça, levando histórias.

Quando eu me deparei com esse pequeno tesouro íntimo, ficou na minha cabeça uma névoa. Eu, que sempre tantas vezes reles, tantas vezes vil, assim como o Pessoa, eu, que tenho sido uma fraude em tudo, também assim como o Pessoa, eu, que me queria escritora desde sempre e não o fui... por que esperar mais? Quais propósitos eu espero para escrever? Quanto mais de mim eu vou ter que ler em vez de escrever? Por isso - e uns outros tantos fatos também - resolvi continuar. Resolvi assumir agora essa escrita, afinal, venho de uma família de escritores...

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tripóteses

Sou sujeito tripartido.
Manhã, tarde, noite.
Dia, mês, ano.
Passado, presente, futuro.
Penso, falo, minto:
Pai, filho, espírito - sinto.


Lanço a teoria tripotética  -
 tripúdio/repúdio/patética




tudo são tripóteses que reavalio continuamente

Sabes

Sabes que és capaz.
Renova tuas energias ao fim de cada dia.
Descansa ao som doce
de músicos de jazz.

Fuma teu último cigarro,
em momento de paz.

Recorda.
Cria para ti mesmo novas
expectativas de um novo dia concreto.

Enfim, perpetua-te em dias que não sejam vãos.

Criar,
deveria ser o primeiro mandamento do homem.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Tributo aos anjos

Já há algum tempo venho pensando em escrever um texto que pudesse enaltecer os anjos que me guiaram até aqui. Não tem sido nada fácil a caminhada e parece que este último ano foi uma prova de fogo. Deus olhou pra mim e disse: - "filha, você também vai ser gouche na vida. As câmeras do céu voltar-se-ão para cada gesto, cada palavra, cada pensamento seu. Te cuida e fim de papo".

Foi uma grande catástrofe. O céu parou de me sorrir. Pesadas nuvens me perseguiram. Pestes me atacaram. Lufadas de gafanhotos me assolaram por completo. Várias vezes eu caí, várias vezes eu me levantei. Até sem forças eu me levantei. Até mesmo sem ânimo e sem alma eu me levantei. Cansada eu me levantei, doente eu me levantei, triste e sem amor eu me levantei.

Quando tudo passou (passou?) eu me perguntei: qual o mistério da vida? o que me faz sorrir de novo? qual o segredo por trás do segredo? Foi então que comecei a perceber a existência deles, digo, de vocês, os anjos do último ano...que não são aqueles conhecidos das igrejas e das folhinhas. São seres de luz que nos envolvem, sem sabermos porque, como, para que. Anjos que nos acariciam sem sabermos que a cada instante, a cada fração de segundo, basta um simples gesto, um simples olhar, um sorriso, uma monocórdica palavra para salvar um minuto, uma hora, uma vida e um ano de existência.

Pois bem, agradeço aos anjos do último ano que me guardam, mesmo sem saber:

  • A moça da padaria, quando sorri ao dar o troco
  • A mulher da banca, ao dar bom dia
  • O trocador do ônibus, bem-humorado
  • O rapaz que vende frangos e me cumprimenta
  • A faxineira do prédio, que limpa minhas pegadas e dá sua risada
  • O homem das plantas, que nota que eu estou sumida
  • A professora, que me diz que eu vou longe
  • A psicóloga, que dá nós em vez de tirá-los
  • O médico, que me escuta
  • Um ou outro amigo que bate à minha porta
  • O pai, que como ao filho pródigo me recebe sempre
  • O filho, para quem não temos idade nem corpo, somos etéreos
  • A mãe, eterna mãe, maria absoluta, pronta para acolher