sábado, 23 de outubro de 2010

Carga

Ontem na rua, vi um caminhão que estava escrito assim:

Carga sem valor
Cenário de teatro

Tive vontade de estampar no peito:

Carga desvalorizada
Atriz do cotidiano

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A menina

Um raio de sol bateu na trancinha do cabelo daquela menina que aparecia ali, pela primeira vez, naquelas escadinhas, onde os carros e as peruas escolares paravam para deixar os alunos na escola.

Vocês se lembram daquelas escadinhas na Via Anchieta? Pois é, foi lá.

Eu vi. Ninguém me contou. Nem eram sete horas da manhã.
No exato momento em que a porta metálica da perua se abriu e os alunos começaram a descer, um raio de sol apontou para aquele cabelo loiro, com uma trancinha lateral.

O que queria aquilo dizer? Qual o significado? Quais as implicações futuras? O que aconteceria dali para a  frente?

Ela calmamente subiu as escadinhas e se encaminhou junto com os outros meninos, aguardando o primeiro sinal.

Eu não sei porque fiquei ali parada, olhando essa cena tão corriqueira. Quando ouvi o sinal, subi correndo para a minha sala.

A aula acabou e vários anos se passaram. Quantos meninos e meninas subiram aquelas escadinhas? Eu mesma, nunca mais voltei ao colégio. O que foi feito daquela menina? Vai ver que ela estudou, casou e mudou. Nem tem mais trancinha. Nem é mais loira.

Meu avô descascava laranjas

Na cozinha. Após o jantar. Era uma mesa oval, de fórmica e azul. Naquela época, as cozinhas eram todas azuis, vermelhas ou amarelas. Tudo combinava: a geladeira, o fogão, os armários, a mesa e as cadeiras. Os paninhos de prato e as capinhas também: tinha capinha pra tudo: para o botijão de gás, para o liquidificador, para o bule de café. E tudo combinava.
A cozinha do meu avô era azul. Com azulejos brancos – até metade da parede – e uma grande mesa oval, onde cabíamos todos: minha avó, meu avô, minha prima, minha irmã, eu e sempre tinha espaço para mais alguém. Sempre aparecia mais alguém: minha mãe, minhas tias, meus primos, alguns vizinhos, alguns inquilinos, algum pedreiro ou funcionário, o tio Manuel...
Mas à noite, tínhamos que comer em silêncio, calados. Nessa hora meu avô era muito bravo. O seu tom era muito sério – respeitoso – mas nós não aguentávamos. E ríamos. Ríamos muito da austeridade do momento. Meu avô dava muitas broncas no jantar e usava sua expressão favorita: “caluda!”. A gente, então, se entreolhava e assentia.  Selávamos o acordo e o  jantar poderia, enfim, seguir o seu ritmo. Todas aquelas delícias feitas por minha avó seriam finalmente saboreadas e repartidas.
Depois de tantos anos sem os jantares na casa de meu avô, o que mais fortemente ficou na minha memória é que no final ele nos descascava laranjas. Muitas. Uma a uma. Para todos nós. Para quem quisesse repetir. Sempre ficava sobre a mesa aquela montanha de cascas e bagaços chupados. Sinal de que o jantar havia transcorrido na mais perfeita paz.
O aroma cítrico da casca da laranja tornou mais doce a acidez do meu avô.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sonhei que

Alguém vasculhou minhas gavetas
Devassou as minhas senhas
Revirou os meus papéis

Leu minhas mensagens
Conferiu meus gastos
Contou meus passos
Ficou bravo
Entendeu tudo errado

Ficou noites insone
Desconfiou do telefone

Olhou os meus pertences
Murmurou bobagens
            Amassou os meus escritos
 Rompeu comigo

 
De madrugada, quando escutei meu próprio barulho,
após ter caído da cama,
suada,
descabelada
 e assustada,
pensei:
que bom! acordei!

Procurei os meus chinelos e levantei para beber água.

Na porta da geladeira, encontrei em negrito:

"bastava me falar
bastava me perguntar
bastava me conhecer
bastava querer me entender
bastava"

Eu minto

Eu ainda uso ralador de cenouras
Espremedor de laranjas
Tábua de bater carne

Meu café é no saco
Meu arroz é pilado
Meu feijão é catado

Quero descobrir o sabor real
 - o sabor do sal -
Quero sentir o simples

Quero me sentir forte
Mas anacronismo é o que eu sinto

Eu acordo com as galinhas
Eu durmo com a Ave-Maria
Eu olho para o tempo
Eu me volto para os dias

Quero me sentir forte
Mas anacronismo é o que eu sinto

E então, quanto mais o vento se alevanta, rodopia no meu quintal, embaralha minhas folhas e meus diários pensamentos,
eu olho para o Norte

Pego a vassoura
- de piaçaba - e varro

varro varro varro

e o vento me traz tudo de volta

tudo tudo tudo

Quero me sentir forte
 - seguir o meu norte -

Um dia ainda deixo de ser anacrônica

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fiz as pazes com Frejat

Não serei mais rancorosa
a ponto de te culpar
Não serei mais vingativa
pra querer te cobrar
Muitos anos se passaram
e o clichê  aqui está: o que passou passou
éramos tão jovens, puristas impuros e impróprios
queríamos o absurdo...

Hoje, escuto tua voz quente,
tuas baladas (baladas!) românticas
tuas palavras ecoam em mim
e fica o principal
fica tua verdade em rimar
segredo com prazer e medo
amor com degredo

Essa voz quente, rouca, envelhecida
combina, casa perfeitamente,
irremediavelmente,
com meus sonhos mais loucos
de vento nos meus cabelos
a estrada ali na frente
nós dois e o resto do mundo
mas então eu lembro que ainda não saí
então, eu vou estar "numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar"
e quando você chegar vou olhar bem fundo nos teus olhos e não vou dizer nada
quero te ver conhecendo os meus segredos...

Acordei meio Ana Cristina

Volta de viagem
e eu perdida
arrumar as roupas
arrumar a vida

Volta de viagem
e eu partida
arrumar motivos
de mais uma briga

Volta de viagem
e eu sofrida
arrumar desculpas
e encarar a vida

Volta de viagem
e eu mexida
sem ter coragem
para a despedida

Volta de viagem

Partida



Hoje eu acordei meio Ana Cristina.

Acordei assim em 2004. Acordei assim em 2010.
A Ana Cristina a que me referi é A. C. Cesar. Poeta maior e marginal, que se foi tão jovem. Pretensão minha, eu sei. Com seus "Inéditos e Dispersos", muitas vezes eu sonhei palavra por palavra. Li seus poemas mastigando em mim sentimentos tão sinônimos que até hoje, eu acho, ainda os estou digerindo. Até hoje me sinto assim, tantos anos depois de "conhecê-la". Mergulhar no universo de A.C. é o mesmo que fazer uma viagem interminável. É uma volta constante a mim - que não fui, que não sou, que não fiz.
É uma volta, volta, volta.
Um dia eu volto.

sábado, 16 de outubro de 2010

A viagem do Re

Fui ao reencontro.
Buscava o resgate. Um refúgio.
Redefinições.

Remanejei meus compromissos.
Reacendi meus desejos.
Refiz meus planos.

Com projetos redefinidos,
fiz a mala recheada de esperanças.

Cheguei reticente. Saudosa. Calorosa.

O Re se tornou morno, insosso, fraco perante minhas expectativas.
O Re se tornou real. A vida como ela é. Sem retorno, sem ré.

Eu peço desculpas por ter ficado magoada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um olhar sobre parte do Brasil

Sempre viajei muito. Sempre observei muito. Sempre gostei mais de ver-ouvir que falar... Procurei uma identificação em cada um desses meus caminhos. E me vi fazendo parte desse meu povo. Eu me vi mineira, eu me vi baiana: baianeira-brasileira.
As imagens que passavam pelos meus olhos, ficavam gravadas na memória como se fossem uma tela. Aquarela. Como não sei desenhar, escrevo. Como não sei pintar, escrevo. Como não sei fotografar, escrevo. Como não sei cantar, escrevo.  Faço destas palavras a minha exposição.
Numa dessas viagens, entre julho e agosto de 2005, passei dez dias correndo trecho, percorrendo parte do sertão baianeiro. Constatei que entre o norte de Minas e o sertão da Bahia não deveria haver fronteiras. Nem divisas. Pelo menos essa foi a sensação que tive.  
Sou fruto do mesmo povo moreno e humilde que é “antes de tudo um forte” e habita o coração do Brasil. Foi pra terra desse povo, o meu povo, foi pra casa desse homem sertanejo que eu dirigi o meu olhar.
Fixei na memória cada pedaço de chão, cada pé de pau, cada casinha caiada com seus velhos e crianças nas janelas.
Parece que tudo é alaranjado e mágico. Parece uma poeira solar que nos transporta para outra dimensão.
Por meio dos meus olhos,
Viajei meio mundo inteiro
Fui a lugares longínquos
Do imaginário brasileiro
Do sertão eu vi o sol,
Vi a terra virar pó,
Vi cidades minguando,
Vi tanto velho só.

Por meio dos meus olhos,
Vi paisagens seculares
Vi uma beleza errante
Metamorfoseando meus olhares.

É uma beleza triste –
a foto que se tira é uma
Mas a que fica, resiste.


Poema das cores

A luz do sol de fim de tarde
 que bate nas pedras da Serra do Espinhaço
é fantástica.
É um laranja-cítrico
que banha os vales verdes.
É um manto de luz
laranja-terracota.
O azul e o branco pertencem ao céu
– coalhado de nuvens e revoadas de aves.
O verde é suave como um manto,
um fino lençol que se estende ao longo.
O preto pertence ao horizonte rochoso
 – que é quase um prolongamento do monótono asfalto.
Mas a terra é da cor da paixão.
Tem um vermelho intenso,
que invade os olhos.
Fura, penetra, racha o coração.


Os mandacarus são enormes. Gigantes. Maiores que as cruzinhas brancas que vemos ao longo das curvas.  Elas, as cruzes, nos remetem ao fim do começo. Eles, ao começo do fim, pois são, a seu modo, uma fonte de esperança e de renovação.

Quando eu passo pelas casas das estradas,
Não vejo o olhar de quem me vê.
Vejo suas janelinhas tímidas,
Que se abrem para os vastos montes da Serra do Sincorá.
Vejo os pastos
Vejo as plantações
Vejo suas crianças brincando na terra
Mas não vejo seus olhos e seus humildes corações.
A passagem é rápida como um aceno
Mas meu olhar guarda pra sempre aquele sorriso
Que timidamente nem se descortina.


As vergonhas do Brasil  I

Ao lado dos cafés secando nos terreiros
Ao lado de meninos descalços brincando nas ruas
Ao lado das poucas e inexpressivas pracinhas
Há a pobreza, a miséria, a desinformação e o lixo.

Contrastando com palmeiras, mangueiras,
umbuzeiros, jaqueiras centenárias,
 “pets” de todas as marcas
Sacos de todas as cores
Cacos de tudo jogados
Restos mal aproveitados,
Cuspidos como escarros
Dessa escória que só usa e não cuida.

As vergonhas do Brasil II

As estradas deveriam se chamar buraqueiras.
Quando alguém, perdido nas estradas deste nosso vasto território,
Conseguisse achar alguém para se informar,
E  perguntasse qual o caminho, diríamos:

 - Entre na Buraqueira Federal, depois pegue a Buraqueira Estadual, seguindo placa nenhuma.

Com o auxílio dos Orixás, da Bahia de todos os Santos, quem sabe chega!!!

Franzinos meninos

Moreno de short
franzino menino
te lembro empoeirado
descendo da boleia.

Nas mãos o porvir.
Nos olhos o infinito.
Sonhos de um futuro distante,
que nunca, ao certo, 
quem sabe, realizaria.

Pés descalços e peito nu.

Que é desse menino?
Que é dos campinhos de futebol,
das bolinhas de gude,
das caçadas e estilingues?

Onde está tua infância, menino?
teus cachorros, teus passarinhos,
teus companheiros?

Ah! Franzinos são teus sonhos
de menino do Brasil.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Meu carinho vai para W.

Já gastei muitas canetas, cadernos e folhas.

Já escrevi no ar, na areia e na poeira (aos seis anos de idade, quando quis fugir de casa e deixei um "recado" no criado-mudo).

Já escrevi pensando, cantando, orando, mentalizando. Mas nunca me senti tão motivada quanto agora, incentivada por meu amigo W.

Sabe aquelas pessoas que a gente tem pouco contato, que é amigo do seu amigo e que, por acaso, gosta de você? Então, W. é assim. Nosso contato é muito pequeno, mais pela distância e  pela falta de oportunidade que por falta de afinidade, imagino. W. é amigo e companheiro de minha amiga D. Acho que pelo fato de eu ter passado quase dois terços de minha vida compartilhados com D., W. tem um carinho por mim, deve ter, não é possível que meu nome não seja citado naquela casa pelo menos.... bem, deixemos isso de lado, o que importa é a qualidade. Enfim, dessa amizade ficou uma grande saudade! Sempre que vou para sua cidade, eu me empenho em vê-los. Num desses dias, W. me perguntou porque eu não escrevia... ou seja, porque não colocava em prática essas palavras soltas, voláteis. Por quê? Por quê? Por quê?

Eu não soube responder... me senti mole, amorfa. Mas também me senti desafiada. Demorou um mês para eu ensaiar este começo. E aqui estou. No fundo, no fundo, não preciso de pretexto. O que me impulsiona pode estar em qualquer lugar, ao meu lado ou longe, de modo bem simples ou dolorido, bebendo ou não, acompanhada ou só.

Meu carinho vai para W., que me fez querer responder à sua pergunta.

Minha prima é escritora

Não de verdade. Não sempre. Mas por um período pequeno de sua vida, minha prima exerceu o ofício de escritora. Narradora epistolar, mais precisamente.

Várias décadas atrás (eu nem tinha cinco anos) meus pais e eu nos mudamos para uma cidade do interior. Durante doze meses seguidos, semana após semana, minha prima nos escreveu cartas.

Recentemente, minha mãe, ao "destralhar", deparou-se com envelopes esparsos, daqueles, verde-amarelos, cujo remetente ainda constava a antiga Rua Jardim Tropical... rua de terra, na qual o carteiro nem ia. Escrever naquela época dava um trabalhão danado... as pessoas tinham de ir até os Correios levar e buscar suas cartas e encomendas. Pois bem, em vez de "destralhar" aquilo tudo, minha mãe juntou uma a uma essas cartas e colocou-as em ordem. Surpresa: o relato familiar de um ano inteirinho.

Na ocasião, a família toda não passava de umas 15 ou 20 pessoas... imigrantes que somos, justapostos uns aos outros, sempre moramos juntos, vizinhos. E o fato de três de nós se afastarem significou alguma coisa.
Os motivos dessa viagem? Tecido para outra história...

Pois bem, minha prima escreveu. Sua narrativa é clara, límpida, objetiva e direta. Sem nenhuma nem qualquer intenção, esses textos, ora datilografados ora na sua letrinha miúda de adolescente dos anos 70, relatam fatos tão corriqueiros quanto importantes.... para mim...

Minha prima escritora contava as coisas que tinham ficado: como tinha sido seu dia na escola, o que iria comer no almoço, quem havia ficado doente, por quantas horas o telefone havia ficado mudo, qual era a novela da época, qual parente distante havia se mudado, qual a cor do casaco novo, até mesmo expressões que até hoje ela usa, assim tipo: "paciência!", enfim, tudo o que lhe viesse à mente e mais tudo quanto meus avós, tios e primos lhe pedissem para contar. Fatos corriqueiros. Mas dotados, porém, de uma importância visceral.

Minha avó devia ser muito ocupada, pois sempre mandava lembranças e dizia que não tinha tempo. Meu avô era incumbido de levar as cartas e ficava pressionando para que ela acabasse de escrever logo... punha seu VW branco a funcionar e lá ia o BB7012... fazendo fumaça, levando histórias.

Quando eu me deparei com esse pequeno tesouro íntimo, ficou na minha cabeça uma névoa. Eu, que sempre tantas vezes reles, tantas vezes vil, assim como o Pessoa, eu, que tenho sido uma fraude em tudo, também assim como o Pessoa, eu, que me queria escritora desde sempre e não o fui... por que esperar mais? Quais propósitos eu espero para escrever? Quanto mais de mim eu vou ter que ler em vez de escrever? Por isso - e uns outros tantos fatos também - resolvi continuar. Resolvi assumir agora essa escrita, afinal, venho de uma família de escritores...