quinta-feira, 17 de março de 2011

Tal qual

Apesar de criança, conseguia saber que era estranho acharem que sua testa parecia com a da avó. Que comparação! As pessoas gostam de falar do olhar, do sorriso, do semblante, da índole e do caráter. Nunca antes ela ouvira alguém encontrar semelhanças na testa. Mas havia alguma razão naquilo. E ela gostava. A testa da avó, sua tez moura, havia ficado como herança. Lado a lado com um enorme conjunto de características genéticas e culturais que, de tempos em tempos, ela gostava de relembrar. A avó, o jeito sempre alegre, carinhoso, protetor. Aquela senhorinha pequena, de fartos abraços, coração aberto, paciência imensa, o clichê das avós do século passado, que já não existem  mais. 

A avó era a primeira a acordar e a última a dormir. A avó estava o tempo todo a trabalhar, sem se cansar. A avó que cozinhava, costurava, tricotava, escrevia cartas e versos, rezava seus terços e levava os netos à missa aos domingos. 

A avó estava sempre perfumada da sua realidade. Seus aromas passavam do café para o leite quente; para suas "fatias de ovo", que era como chamava as rabanadas diárias; para o feijão com toucinho; para as galinhas e sardinhas fritas; para as polentas, sopas e açordas.

A avó estava sempre imersa nos seus ruidosos afazeres, auxiliada por seus eletrodomésticos antigos ligados todos ao mesmo tempo: panela de pressão, máquina de lavar, aspirador de pó, enceradeira, radinho de pilha e máquina de costura. Tudo, é claro, com as novelas da Janete Clair ao fundo e os seus maravilhosos cantarolares de fado. A avó assistia TV até tarde morrendo de sono para o avô não dar bronca nos netos.

Parecer a testa da avó, ao mínimo que seja, é uma honra. Embora alguns vejam de forma diferente, sempre e tudo, embora ela mesma saiba que uma moeda tem suas duas faces, como desprezar lembranças tão vívidas? A neta sabia, sim, o quanto a avó era maior que aquilo tudo. A avó era muito maior que as suas tarefas domésticas, mas nem por isso estaria constantemente estafada, ou numa depressão profunda, como poderiam supor.  A avó do século vinte chorava e cantarolava fados enquanto fazia o almoço. Já a neta do século vinte e um chora e cantarola fados bebendo vinho tinto sozinha à noite.

A testa é a mesma. A tez moura também. Um coração apertado e o gosto pelo fado são atávicos. 


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