terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Uma outra reportagem sobre a chuva

Está chovendo em beagá. Após 35 dias de calor desértico e sem uma gota d'água, grossos pingos estão  fazendo barulho nas telhas e molhando minhas plantas. O cheiro da terra molhada inunda o ambiente perfumando tudo. A chuva aumenta, mas ainda não molhou todo o chão. As janelas todas estão abertas, mas prefiro ficar sentindo a brisa, o barulho, o cheiro desse início de chuva a sair correndo pra fechar a casa e perder o maior espetáculo...  hoje não vou poder caminhar, mas vai valer a pena...

Uma borboleta veio se abrigar no pé de acerola. Os pássaros pequenos voam em revoada atravessando os telhados e minha cobertura. As gotas estão geladas. Agora há raios e trovões. A chuva aumentou muito. Precisei tirar o ralo para água escoar mais rápido. O vento zune através das vidraças e novamente está entrando água pelas frestas. Mas eu não ligo. Isso não é um problema. Isso é um presente.

Os vidros estão embaçados e refletem a água escorrendo. O vento trouxe a água até mim. Estou toda molhada. Meus pelos, arrepiados. A água é tão pura quanto fria. A água batiza. Torna novo. Nomeia aquele sentimentozinho triste e sufocante de uma alegria maior, infantil. A água lava a alma. Fazia muito tempo que eu não tomava chuva, fazia muito tempo que eu não sabia o que é deixar molhar, bem molhadinho, molhadinho de chuva, fazia muito tempo que eu não cantava "tomar um toró"...

Parece que tudo está se acalmando. O vento vai diminuindo. O barulho é mais calmo. As gotas estão afinando. Os trovões já são mais espaçados, quase um ronronar. Gotinhas pingam. Agora são elas que fazem um barulhinho. Minha roupa está secando colada ao corpo, mas os chinelos  e os pés ainda estão encharcados.

Em algum lugar vai nascer um lindo arco-íris. O sol ainda está por trás das nuvens de chuva. Mas de repente, ela volta. Se eu fechar os olhos, só pelo barulho, posso sentir a direção e o volume. Volume das chuvas. Hoje não haverá volume dos passos. O volume é o do silêncio que a chuva faz. Silêncio na alma de quem pode ouvi-la. Sorte que estou agora, neste momento, ouvindo e respirando junto com a chuva. Na minha varanda, alpendre imaginário, no meu espaço descortinado e quente, abafado pelo sol das cinco horas da tarde... Como é lindo. Posso ter a chuva pra mim. Ela é compassada. Vai e volta. Cadência. É uma respiração profunda, meditativa, provida de som e cheiro. É uma experiência cinestésica.

Mais uma vez aumentou. Já são 45 minutos de chuva. Ela não é linear. Vem em todas as direções. Força meu olhar pra dentro e pra fora, também em todas as direções. A chuva força também as digressões. É curioso esse crescente que compassa as minhas respirações. O som da chuva. O som da água. O som dos trovões. O som do vento. Aumenta e diminui. Torna a aumentar e a diminuir... e o coração se acalma. E o corpo repousa. E a mente se tranquiliza.

Ao longe, uma buzina me desperta e me lembra dos transtornos que a chuva traz, principalmente no trânsito, também para as áreas de risco, me faz recordar das recentes tragédias ocorridas, dos deslizamentos de terras, das mortes, das tristezas, das pessoas que perdem o tudo e o nada que têm. A buzina e o barulho dos carros que atravessam rápido o cruzamento me trazem à realidade. Não sou alienada e tampouco quero me redimir. Mas é que este caos em que se tornou a vida privada do século 21 justifica também um olhar amoroso para a natureza, para a mítica chuva, para um momento de lirismo. Quero me dar o presente de desfrutar a chuva, de observá-la, algo tão simples, prosaico, bucólico. Sou privilegiada por sentir bem a chuva, por sabê-la bem, saboreá-la. Agora só há um chiado, leve. Tudo se acalmou e voltou ao seu normal. Como magia, ela se foi.

 Acabou. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário