quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Outra Dolores

Dolores. Lola, para os mais próximos. Tanto fazia. O fato é que ela assumia sua identidade sem nenhum constrangimento. Por mais que lhe dessem nomes fortes, brilhantes, guerreiros, não passava daquela pessoa simples, que tinha como seu único feito heroico o fato de ter continuado a caminhar. Para frente.

Dolores acordava cedo todos os dias. Muito cedo. O que àquela altura do ano era um refrigério, visto que o sol já estava a pino muito antes das sete da manhã. Mas o que quero mesmo contar é que para ela acordar cedo era uma bênção, pois, assim, sentia sono à noite e não sofria com as insônias dos meses anteriores.

A noite era para ela a pior parte do dia. O momento em que estava só, consigo mesma, sem responsabilidades, sem ordens, sem metas a cumprir. Estava só, consigo mesma, e por sua conta. E por isso era a pior parte do dia.

Dolores chegava em casa e tirava os sapatos. Tirava a roupa e tomava um banho gelado. Ah, as maravilhas do verão. Abria uma garrafa de vinho e então começava a se despir. Despia-se da boa funcionária que era; despia-se da boa mãe que era; despia-se da boa vizinha que era; despia-se da boa colega que era; despia-se da boa filha que era; despia-se da boa mulher que fora.

Dolores, nua, consigo mesma, sentava sua alma de frente para o computador e começava a escrever. Pensava numa história, num romance, num poema, e as palavras saiam mudas de sua boca, passavam pelos seus dedos, filtradas pelo coração, e se quedavam naquela pequena tela de dez polegadas.

Dolores enchia e esvaziava taças. Às vezes ouvia música, às vezes via tv, às vezes conversava nas redes sociais, tudo ao mesmo tempo em que escrevia e buscava se inspirar.

Dolores gostava de pensar nos grandes escritores do passado, nos grandes poetas. Como deveriam sofrer, escrevendo à luz de velas papéis esparsos; quantos lápis e canetas pousados, enquanto um longo suspiro inundava aqueles ambientes... quantas xícaras de café, quantas doses de cachaça, quantas taças de vinho devem ter sido derrubadas em manuscritos que se tornariam clássicos nos dias de hoje... quanta solidão a escrita provocara...

Então, entre um suspiro e outro, Dolores soltava uma frase. Sustentava o olhar em algo vago, vasculhava sua memória, suas lembranças e ficava procurando um sentido para aquilo que escrevia. Sempre se justificava. Mesmo que aquilo não fosse nada, não tivesse sentido algum, não ficasse para a posteridade - como o pai costumava dizer - ela escrevia. Longe dela, muito longe, querer se comparar a alguns daqueles escritores que evocava em pensamento. Mas, de todo modo, o ofício era o mesmo (ainda que a arte final não o fosse), ofício tímido, único, solitário e sofrido de exprimir-se no papel, espremer-se toda, entre suspiros, soluços, e imagens fluidas, que depois de prontas ficariam ali, pra sempre. Fechadas na gaveta, presas na tela, guardadas na memória. Ninguém poderia rasgá-las. Ninguém.

Mas como eu contei, Dolores gostava de acordar cedo. Muito cedo. E já era tarde. Todos esses pensamentos embriagados já passavam da meia-noite. E mais um dia, graças a deus, mais um dia tinha se passado, sem a angústia da insônia rondando Dolores.

Dolores salvava o texto. Salvava-se. Mais um dia de sobrevivência de Dolores. Amanhã seria outro dia.

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