sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Meu avô descascava laranjas

Na cozinha. Após o jantar. Era uma mesa oval, de fórmica e azul. Naquela época, as cozinhas eram todas azuis, vermelhas ou amarelas. Tudo combinava: a geladeira, o fogão, os armários, a mesa e as cadeiras. Os paninhos de prato e as capinhas também: tinha capinha pra tudo: para o botijão de gás, para o liquidificador, para o bule de café. E tudo combinava.
A cozinha do meu avô era azul. Com azulejos brancos – até metade da parede – e uma grande mesa oval, onde cabíamos todos: minha avó, meu avô, minha prima, minha irmã, eu e sempre tinha espaço para mais alguém. Sempre aparecia mais alguém: minha mãe, minhas tias, meus primos, alguns vizinhos, alguns inquilinos, algum pedreiro ou funcionário, o tio Manuel...
Mas à noite, tínhamos que comer em silêncio, calados. Nessa hora meu avô era muito bravo. O seu tom era muito sério – respeitoso – mas nós não aguentávamos. E ríamos. Ríamos muito da austeridade do momento. Meu avô dava muitas broncas no jantar e usava sua expressão favorita: “caluda!”. A gente, então, se entreolhava e assentia.  Selávamos o acordo e o  jantar poderia, enfim, seguir o seu ritmo. Todas aquelas delícias feitas por minha avó seriam finalmente saboreadas e repartidas.
Depois de tantos anos sem os jantares na casa de meu avô, o que mais fortemente ficou na minha memória é que no final ele nos descascava laranjas. Muitas. Uma a uma. Para todos nós. Para quem quisesse repetir. Sempre ficava sobre a mesa aquela montanha de cascas e bagaços chupados. Sinal de que o jantar havia transcorrido na mais perfeita paz.
O aroma cítrico da casca da laranja tornou mais doce a acidez do meu avô.

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