segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Escovando os dentes na janela

Ninguém sabia que Jurandir escovava os dentes na janela.
Embora cultivasse esse costume desde criança, ninguém sabia ou ao menos nunca havia comentado esse hábito curioso.

Quando criança, Jurandir morava num apartamento de frente para o mar, no primeiro andar. Ela fazia desse momento íntimo, desse gesto simples, uma pausa para reflexão. Embora fosse tão pequeno, gostava de aproveitar o tempo - pelo menos aqueles dois ou três minutinhos, no máximo - sentindo o vento no rosto, o cheiro de mar, ouvindo o barulho das ondas, sentindo o calor do sol, a brisa cortante cheia de sal, enquanto escovava os dentes e pensava na vida. Pensava em coisas simples de criança, em como seria o seu dia na escola, ou de que iria brincar na volta, ou verificava consigo mesmo se já havia arrumado os livros para a aula. Era como se Jurandir organizasse seus pensamentos. Era uma agenda mental passada a limpo. Agenda de criança, com todas as suas diversões e brincadeiras.

Hoje, adulto, Jurandir mora numa cidade grande, terceiro andar, de fundos. E continua escovando os dentes na janela. Ele gosta de pensar que seu apartamento, mesmo sendo de fundos, tem uma visão privilegiada em relação aos apartamentes de frente. Enquanto para estes a rua é barulhenta e infernal, colada com os outros prédios da frente e invadida por um ininterrupto barulho de carros e ônibus, para ele, nos fundos, a rua é mais calma, e o que se vê são os quintais das outras casas vizinhas e prédios, com seus cachorros cochilando ao sol do meio-dia, com jardinzinhos capengas e abandonados, que as pessoas acreditam não serem notados, com roupas no varal, com cacarecos jogados e amontoados nos cantos. Vê-se partes, pedaços de projetos e sonhos largados ou mesmo belos e viçosos jardins bem cuidados, rosas floridas demonstrando zelo e capricho, espaços projetados de famílias bem-sucedidas.

Da janela de fundos de Jurandir, vê-se também a avenida principal do bairro, que corta de fora a fora seu ângulo de visão. Vê-se as árvores plantadas há mais de quarenta anos, pássaros que teimam em bicar as goiabas remanescentes nos quintais. Vê-se pessoas passeando com seus cachorros. Vê-se a vida do bairro fluindo num cotidiano ensolarado da hora do almoço.

Todo dia Jurandir põe a pasta na escova e se encaminha para a janela. Abre-a completamente. Ele sabe que ninguém estará olhando pra ele. Mesmo que outras pessoas possam vê-lo, não desviarão seu olhar e sua atenção para uma triste figura de pé, escovando os dentes numa janela, durante uns dois ou três minutos, no máximo.

Enquanto a escova passeia por entre molares, pré-molares, laterais, incisivos e centrais, inferiores e superiores, faces internas e externas, Jurandir se deixa fugir. Seus olhos percorrem os quintais, garagens, árvores, carros e transeuntes. Sua mente vagueia num ínfimo tempo de constatação e reflexão.

A escova massageia seus dentes e pensamentos. Quando vai escovar os dentes após o almoço, pela sua janela vê que há aqueles dois sentados no barzinho da esquina. Há a mulher que lava panelas naqueles degraus perto da cozinha da casa dos fundos. Há a dona da casa embaixo de sua janela, aquela que sempre faz festas, varrendo o quintal. Há o homem que fala alto e grita, será que tem problemas de cabeça ou bebeu demais? Há crianças indo e voltando para a escola.

Jurandir termina. Minutos, apenas. Uma agenda mental passada a limpo.

Um dia, enquanto Jurandir estava no seu ritual diário de higiene bucal e mental, um caminhão da prefeitura parou na avenida para realizar uma operação de poda de árvores, pois os galhos estavam por demais atrapalhando os fios. Um homem subiu numa grua e invisivelmente iniciou o seu trabalho.

Jurandir ficou ouvindo aquele barulho medonho da serra elétrica e observando o homem fazendo o seu trabalho compenetrado. Ambos, Jurandir e o homem. Terminaram. Ambos, Jurandir e o homem.

Então, o homem acenou. Fez um gesto esquisito, uma espécie de continência e depois sinalizou para seus companheiros que havia terminado e era hora de descer.

Engraçado, até aquele dia nunca souberam que Jurandir escovava os dentes na janela, apesar de ser um hábito que cultivava desde criança.

Um comentário:

  1. Socorro!!! Estão cortando as árvores cinquentenárias do Jurandir!!! E agora? Como vai continuar escovando os dentes na janela???

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